segunda-feira, 26 de março de 2012

Ossos do ofício

 Vértebra

 inesperada paisagem

 mínima

 encontro fortuito

 amostra

 fractura exposta

 de lava

 verdade porfiada

 golpe

 de crime violento

 cirúrgico

 osso desumano

 no gesto

 sinal de espanto

 raiz

 seca de carnes

 restos

 do cemitério do céu

 abandonados

 por um cão rafeiro

 a chave

 e um vestígio contaminado

 o parafuso

 de insólita solidão

 percurso

 ou despojo de bruxaria

 é dedo

 acusador ou pesadelo

 de vala comum

 antepassado perdido

 na indiferença

 último refúgio de poeta

 o arco

 do camponês dobrado

 salta

 menino maltratado

 no instante

 alegre da mulher jovem

 a fruta caída

 da nespereira que treme

 à sombra

 do peregrino que adormece

 única

 vértebra que resplandece

 vertical

 flauta que não se curva

 à melodia

 seta de osso que não esquece

 a fragrância

 a medalha que se agita

 no pescoço

 onde se elevam sufocados e aflitos

e ancestrais

os gritos lancinantes

por terra

os fragmentos de deuses

que conheci e acordaram

mortais.


Lisboa, 26 de Março de 2012

Carlos Vieira



                                               Imagem da Internet de uma “Vértebra”


sábado, 24 de março de 2012

Efémero

Ainda brilha a foice verde do teu olhar
na penumbra da cortina
da minha timidez

a tua voz corria entre os seixos devagar
inundava-me cristalina
a tua nudez

tuas mãos nas minhas mãos de par em par
erguiam na luz matutina
voos de avidez

lembro-me dos teus ombros e do luar
sob o lençol a carne vespertina
de se extinguir a palidez

oiço o rumor dos teus lábios ao despertar
o perfume da minha flor infinita
e a inevitável insensatez

insinuaste-te ou pareceu-me ouvir-te respirar
de súbito neste ínterim da escrita
ou ficaste quieta no talvez
como sempre

Lisboa, 24 de Março de 2012

Carlos Vieira


                                              “Girl Reading a lettter at an open window” Vermeer