sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

WINTERPLAY / SONGS OF COLORED LOVE

Rachelle Ferrell - I can explain (live)

Pequeno texto em memória de uma perda irreparável


O teu sorriso media o perímetro do lago e a pedra ao sobrevoá-lo beijava a superfície da água no teu olhar, sem sombra de medo nem de mágoa, corria o suor pela face e o afago da tua mão pelas tábuas. Depois o gesto único de um prego cravado bem no meio do silêncio.
Tu aprendias a voar num escadote, trapézio dos teus dias de um espectáculo sem público onde dizias adeus com um pincel a pintares ao de leve a brisa e misturando as cores mudavas as paredes do tempo.
Ali estavas tu contorcido sob o tampo da escrita, ali moldavas na tua bondade e paciência infinita a mais insensata ignorância e o mais ingrato desprezo.
Recordo-te no teu afável saber e do afecto tranquilo com que acendias as lâmpadas, nessa interligada erudição de fios, de amizade e interjeições de espanto.
Depois ias devagar até à tristeza dos canos e nós descansávamos nas nuvens de silicone derramado, inventavas essa solução transparente dos pequenos gestos e das palavras sopesadas na tua destreza de apertado espaço.
Preenchias de solidão a fuga das folgas e desfazias os imponderáveis das portas e das janelas e das gavetas e dos poetas que gemiam sem porquê e tinham mortes de véspera, de correntes de ar.
Ias pelos mistérios dos telhados e pela clarividência das frestas e perturbava-te a pobreza na claustrofobia dos sótãos, os vestígios de saberes definitivos e tantas vezes agachados, apercebi-me da tua incompreensão e da tua verticalidade simples de sol de Inverno.
Era notável o esplendor da tua entrega perante esta democracia de saguão, essa morte que te levou meu amigo é pequena demais, pois não se apaga assim a grandeza do teu silêncio e a alegria dos teus pequenos gestos a sobrevoar o lago da memória que beija agora o teu eterno sorriso de pedra.

Lisboa, 19 de Janeiro de 2012

Carlos Vieira

(Pequena homenagem ao "Toni")
 

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Outra vez cantos de sereia

De ti
são inúmeros os sinais que vislumbro
por detrás
da efémera cortina do momento
em que espreitas
por uma janela de tempo
de tanto mar
e de tanto desassossego
contudo não encontro
a nua latitude do teu torso
e navego na esteira
do que nos guia e nos ilude
por vezes aquela luz lá longe
podem ser as labaredas do teu seio firme
ou o intrépido rasgar da tua carne
enunciando o fulgor dos pássaros
cúmplices
solto as amarras
e sigo-te por aquela rota
pois podes ser o silêncio aceso nas falésias
e ouvir a tua voz
é como exibires uma coroa de prata
e se despires a filigrana da espuma dos dias
vais devastar a mentira etérea
e o verdete da malícia
que nos cerca
e nos separa
se pudesse
apenas saborear de novo o calor e o sal
que libertas do teu corpo
só isso me iria permitir
fundear noutros horizontes
à sombra dos teus pensamentos
se pudesse usufruir dos aromas
que descem felinos
pela noite das árvores dos bosques
no teu território
se pudesse desfrutar
no jardim luxuriante um simulacro
dos teus inesperados abraços
e ir à flor da pele
sorver o elixir e o antídoto
dos frutos proibidos
se pudesse descobrir o meu rumo
se ele fosse necessário às tuas tréguas
nunca estaria perdido
nestes desencontrados sinais
de ti

Lisboa, 17 de Janeiro de 2012

Carlos Vieira







                          “Pequena sereia” em Copenhaga