quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Um primeiro amor de 1.ª classe


 
Chove interruptamente, a minha jovem professora da 1ª classe, veste uma gabardina em 1967, ela podia afastar todas as nuvens com o seu sorriso suave.
De botins de borracha atravesso os charcos e o canto cristalino do ribeiro, conheço-os de cor e salteado, agora vou orientar a elegante professora, nestes caminhos impraticáveis.
É ainda escura a madrugada, eram enevoados os textos da 1.ª classe, se escolto a minha primeira professora, não quero saber do tempo, nem dos números e letras, quero ficar retido neste ano.
Nunca usei o mata-borrão nesse ano, a professora deu-me o livro do Bambi, pela minha tarefa de guarda-costas.
Eu disse um palavrão, quando me mandou chamar para limpar o recreio, dispensando-me da nobre missão de seu escudeiro.
Ela, no ano seguinte, não regressou e fiquei de castigo para o resto da vida, aparece sempre nesta época do ano.

Lisboa, 31 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

Guerra civil




Uma súbita iluminação, uma corrente de ar, o efeito de sopro, o clarão na árvore do medo,
os efeitos colaterais e o estrépito das sirenes.
As pernas e corpos pela terra e pelo ar, as estrelas e o azul do céu sangrando, a entrar pelo
sótão, as botas cardadas e tu sem respirar debaixo da cama.

O combustível no pavio é uma combinação dessa paz podre e do rosnar de ameaças com
escaramuças de permeio. Seguir-se-á, certamente, a declaração de guerra após aquele navio
ou antes um barco a remos, um avião de papel ou a desculpa de uma flor que furou o
bloqueio.

Oiço o assobio do vento na empena e o grito lúgubre na chaminé, o rufar dos tambores,
alguém a contar espingardas. A guerra bate-nos à porta e as crianças vão dormir para cama
dos pais, escondem-se debaixo dos cobertores, caso não tenham sido já todos alistados.

Há um rosto antigo que arde na campânula da candeia que cuida dos soldados feridos,
dos gazeados, neste imenso hospital de campanha faltou a eletricidade.
Todos já fomos atingidos e já ficamos às escuras, tivemos em tantas frentes. Agora,
recordando, também nós confundimos o amor e a luz com a compaixão de uma enfermeira.

Enquanto o Inverno se apodera das trincheiras, a água ferve na cafeteira.
Neste tempo de rações de combate, de comida fora de prazo, os soldados do pelotão aperta-
se-lhe o dedo no gatilho e no coração, enregelados.
As vítimas dos fuzilamentos também se lhes aperta o vazio e um irmão do outro lado da
barricada.
Junto aos muros e labirintos de tijolo das cidades sitiadas, todos agonizamos, comendo o pão
que o diabo amassou e bebemos café sem açúcar.

Entre as rugas de tantas tempestades e batalhas há olhos que cintilam de demência e alegria, outros que faíscam de raiva ou ardem nas lágrimas de fumo e de pólvora, as granadas cegas confundem-se com aves e o esvoaçar dos estilhaços dos sonhos, tornando impossível à mão gentil o amanhecer que procura.

Lisboa, 31 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

                                                  “O Fuzilamento” de Francisco Goya

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

História com fim triste para o plátano da minha rua



Não importa a existência

de um único plátano na minha rua

aliás não tem qualquer relevância

apenas perdia

e isso não se pode considerar pouco

um acordeão de vento.


Sei dele no outono

das folhas vermelhas

que me acenam

que se vão embora

há árvores que somente

fazem sentido

em algumas estações

noutras eram dispensáveis.


Sei dele também

que está etiquetado para ser abatido

pelos serviços camarários

o que é pena

puro egoísmo

causa-me um certo transtorno

às minhas tardes livres.



Encosto-me a ele por vezes

e oiço-lhe bater um relógio bêbedo de seiva

ninguém dá valor às árvores

que abraçamos durante a vida

com quem fizemos amor

árvores poderosas

de inspiração e sombra fresca


Sei dele do plátano

pela penugem das bolas verdes

sob a relva ou penduradas

amáveis como pequenas nuvens

que amadurecem

habituei-me a admirá-la

e a  considerar a sua opinião vegetal.


Por baixo havia um banco de jardim

de um verde desmaiado

ali se contracena sempre

o mesmo drama

de uma velha conhecida solidão

e das flores que emergiam dos seus olhos

era um banco com o freio nos dentes

e de raízes na terra

de quem vivia à sombra do plátano.


No plátano os pássaros eram fugazes

assombrações

uma bela manhã recortada por uma motosserra

e o plátano passou a ser

mais uma assombração.


Lisboa, 29 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

João Paulo, Peter Epstein & Ricardo Dias - Deolinda


Eternity - genius Lisa Gerard


domingo, 28 de outubro de 2012

Felino


 

 

Na sombra selvagem

fulge tão ágil e letal

o gesto mais puro

que ceifa uma vida

no rumor da folhagem

o coração das clareiras

o golpe tranquilo e audaz

o carvão da camuflagem

reescrevendo a paz

 

é o gume do silêncio

aceso nos meandros

da fome e da morte

um grito enlaçando

estrelas que deixam

as garras degolando

noites de insónias

 

aquela faca pousada

uma ave da eternidade

que se esvai no pulso

os dentes que rasgam

a pele das palavras

e calam o desespero

do sangue que recuperou

a luz e a liberdade

 

é urgente o relâmpago

que ilumina esta fera

em nós encurralada

que liberte de nós

este vazio esta ameaça

esta voz que apodrece

na garganta

do tempo que nos esquece

que nos devora

tão presente

tão felina por isso inocente

 

Lisboa, 28 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

 

 

 

sábado, 27 de outubro de 2012

Ousadia


 
 

Trama

no cerzir a luz

dos trémulos estores chineses

um crepúsculo de lâminas de madeira

e de olhos dos vigilantes da tolerância

esses que observam incrédulos

os contornos do destemor

dos que se movimentam

no lusco fusco da carne e da vida

deixando nas entrelinha

os pássaros

dúcteis de alegria

e as palavras as que soçobram de prazer

ambos prenhes de firmeza

possuídos de feroz dissidência

beijam-se na penumbra ou na praça pública

recusando todos os pelourinhos

resgatando à reverência do silêncio

o desvendar do amor

e o propósito de serem senhores

do seu caminho.

 

Lisboa, 27 de Outubro de 2012

Carlos Vieira


  
                                                  “O Poeta com os pássaros” de Marc Chagall

 

 

 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Fragmentos de alma rústica



I
Sou um vago ouriço
que erra pelas  hortas
verdejantes
que ora se enrola
ora vacila
em sonhos de nevoeiro
e clorofila

II
Sou um pássaro
ou uma ave migrante
que no seu canto
os seus procura
ou protege do perigo
e a baixa altitude
ora leva consigo
o peso da angústia
ora a alegria do trigo
  
III

Eu volto ao campo
levo comigo as ruas
toda minha vida
revolta
do gozo imediato
e inconsequente
e no forno cozo
um único pensamento
uma fatia de pão quente

IV
Eu sou todas as serras
ainda me cercam
as oliveiras
nos dias cinzentos
e dias de prata
cheguei atrasado
ao horizonte
nem os moinhos
já fazem farinha
nem os sinos tocam

 V
Sou eu que estou
lá em baixo
onde o rio anda já não corre
já sem peixe
nem rouxinóis
ou cabeleiras de vime
e nas margens caracóis
não extravasa
neste rio  ninguém se afoga
ninguém sai de casa


Lisboa, 26 de Outubro de 2012
Carlos Vieira



                                                            “My Soul” Karen Meyere



quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Musgo...


 

Musgo

Ode alucinante

Rumor de corrente nocturna

Filigrana de folhas caducas de carvalho

Entrelaçadas de céu para um pássaro afoito

E que no vagar dos insectos insones acontece

Na subtileza urgente dos meus dedos humedece

Labirinto de grutas e selva de fragâncias onde pernoito.

 

Lisboa, 24 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Faúlhas



Ígneo, enquanto andava durante o Verão passado, por terras calcinadas pela devastação dos incêndios, deparei-me com este controverso adjetivo que tanto alude à natureza como à cor do fogo. Sendo certo que, uma coisa pode não implicar a outra, contrariamente à expressão, “não há fumo sem fogo”, fórmula popular que traduz uma estranha ressonância e coincidência científica.

É ancestral a busca e preocupação do ser humano por fontes de ignição, pelo despoletar o fogo, pois conhecer o que está na origem do mesmo, foi sempre meio caminho, para percebermos os primeiros passos desse homem que nasceu imaculado ou do louco incendiário, do homem que brinca com o fogo e daquele outro que domina o mundo pelo seu poder de fogo ou, tão-somente, do humilde residente das fogueiras e dos fornos, saltimbancos manipuladores das fontes de calor, que moldam os resistentes materiais e os tornam cristais, habitáveis, de uma beleza polida e quase eterna.

A “atração do fogo”, não pode ser considerada, nem sequer uma derivação do “fogo que arde sem se ver”, pois neste caso o ígneo poder faz de nós combustível, enquanto na primeira, o homem provoca a combustão, ajuda a que a mesma se propague ou no mínimo, protagoniza um qualquer Nero, em êxtase perante uma insignificante Roma, em chamas.

Não é só no meu imaginário que as labaredas lavram histórias de tios-avós á lareira, desfiando um rosário de heróis decantados em cofres e alcovas medievas, nesse crepitar de escaramuças e de paixões dissidentes.

Contudo, foi nesse fogo lento e na sedimentação dessa lava de estórias que se aperfeiçoou a liga, que nos tornou mais firmes, aguentando as messiânicas correntes e deslizes, temperando no coração um rumo demiurgo e mantendo-lhe a febre e o ponto de fusão, que nos reinventa e eleva a cada momento, ao deflagrar do renovado conhecimento, exortando corajosos gestos de misericórdia e humanidade.

Foram definhando as fogueiras que sobrevoamos na infância, os dragões que nos davam a prevalência das florestas e o fogo-de-artifício que dava início ao sortilégio estival, de dias dionisíacos de festa.

Travestidos de novos modelos e roupagens, passaram-se a fazer às escondidas os autos de fé iluminando tenebrosas masmorras e estreitos labirintos de espírito, fustigando quem enfrentando as trevas, se atrevia a alumiar a penumbra com o candeeiro queimando o óleo de esperançados discursos e de generosas palavras sussurradas.

O inferno ardia nas fronteiras da nossa prodigiosa imaginação, os mafarricos delatores em sulfúreos lugares evoluíam, permaneceram refractários às línguas de fogo que os lambiam e flamejavam archotes, tornando mais real a dimensão do homem e do seu inferno e mais relevante o doce vegetar da sua sombra bruxuleante.

No entanto, todas aquelas reflexões, se foram apagando e naquele campo de desolação, onde de pé, a negritude dos troncos nus acusadores protestavam, a cinza que como um manto cobria terra, não havia nada mais para arder, apenas o acaso do rescaldo de um tempo de solidão, o amor tinha-se tornado num fantasmagórico fogo-fátuo.

 

Lisboa, 22 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

 

domingo, 21 de outubro de 2012

Amava-te...


amava-te
no céu a rubrica
do seu corpo de ave
de partida
apagava -se
num chapéu de chuva

sem acreditar
a sua mão reconstruia
o seu rosto
a partir do espelho
da sua ausência
e do caos dos seus cabelos

sem pestanejar
definiu nos seus lábios
o seu silêncio
suspendeu a respiração
ao contornar
a curva do pescoço

a doce memória
do seu perfume
contaminou seus dedos
as lágrimas e a chuva que caiu
formaram o rio
que os afogou no desenho

Lisboa, 21 de Outubro de 2012
Carlos Vieira


                                                        “Rainroom” autor desconhecido


5 - Pomba branca


5 - Pomba branca

      vai e leva a carta branca

      as novas da declarada guerra

     

 

 Lisboa, 21 de Outubro de 2012

 Carlos Vieira

4 - Pomba branca


4 - Pomba branca

     acena um lenço de espuma

     no arame farpado das trincheiras

 
 Lisboa, 21 de Outubro de 2012

 Carlos Vieira

3 - Pomba branca


 

    pomba branca

    descansa no telhado vermelho

    na guerra pessoas e pombas vivem sem abrigo

 

 Lisboa, 21 de Outubro de 2012

 Carlos Vieira

2 - Pomba branca


     Pomba branca

     devorada pela nuvem negra

     existe um falcão emboscado no pensamento

 

Lisboa, 21 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

1 - Pomba branca...


Pomba branca

que sobre a neve tomba

acendem-se asas numa rosa de sangue

 

Lisboa, 21 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

sábado, 20 de outubro de 2012

Poema dos ignorados efeitos secundários






ouço a fome ou o bosque

no rumor da flecha

imperturbável

 

sílaba a sílaba tudo se cala

reféns de pétalas de seda

e de esfinges

 

o prisma do sorriso cínico

após o sopro letal

da zarabatana

 

um prego de aço é uma raiz

de vergonha que se dissemina

nos muros sem rosto do país

 

a súplica da prece que te detêm

ferido de asa e resistes porém

à farpa sibilina da palavra

 

conhecem-te os genes

a efígie da moeda de troca

e por quanto se compra um escravo

 

na tua orelha de flor

o repto de um segredo que flutua

e a armadilha do mel

 

Lisboa, 20 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

4 – Observação de aves


 

 

Descansou ali na cota mais alta

Caiu das nuvens do ombro fecundo

E assim sentado a ver o mundo

Estremeceu-lhe a repentina falta

 

E quanto mais o olhar no cimo se perdia

A curva da sua ausência era dor tamanha

Mais no perfume das ancas se envolvia

E lhe batia no peito o cume da montanha

 

Este homem que tão alto ascendeu

Que tão ingénua alegria à amada tece

Agora o medo do abismo desconhece

Porque o fogo do amor jamais esqueceu

 

Lisboa, 20 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Extinguiu-se aquela luz efémera...


extinguiu-se aquela luz efémera

já não sei se o fruto amadurece

nem do reflexo do peixe a meia água

perdeu-se a limpidez do canto das aves

na rua a brisa é agora a lâmina que nos cega

é o poeta que cedo nos deixa nos arrepios da nudez

e que criou um rio a partir da lágrima que caindo teimosa

nos revelou a curta distância entre o princípio e o fim do mundo

 

Lisboa, 19 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Poema de um lago sem nome ...


Poema de um lago sem nome

que nos olhos de infância secou

 

o mistério daquele lago

era redondo, era de lodo e profundo

 

tinha um olhar duro e franco

como uma batalha naval acesa por um relâmpago

 

nele vivia o empertigado e distante mundo

de um pato marreco e branco

 

a memória era aquela pedra lisa atirada

que entre ambos passou

 

os gestos eram mágicos de capa e da espada

que irónica a todos sobrevoou

 

esta é a irrelevante história em círculos de um lago

de uma pedra e do pato

 

que ao chegar à margem do poema

por ter heróis tão pueris soçobrou.

 

 

Lisboa, 18 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

3 - Observação de Aves



Todos os dias nos écrans e nas janelas
enquadradas, árvores, inquietações e  pardais
sonhos em agonia pendurados nas cúpulas.

Deste tempo crítico do arrulhar das rolas
outras dores descem pelas chaminés e beirais,
asas de um tempo triste, penas que nos calam.

Até que os homens das prestações vencidas
das alturas sem sucesso se atiram para os jornais
aprendendo a voar, “amortizam” as suas vidas.

Lisboa, 18 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Abuso da posição dominante


 

 

arrancara alguns cabelos

em sinal de boa fé tinha garantido a madrugada

e a compostura do efeito molhado de gel

 

a fim de celebrar a escritura

com uma das mãos escondeu as “partes”

a outra tremer de frio fez a assinatura

 

o homem ficara irremediavelmente só

porque devem-se honrar os compromissos

e apertar o nó da gravata

 

havia o odor da tinta permanente

que o levou daquela exigência burocrata

a um lugar que o deixou distante

 

seminu e perplexo

leu e aceitou todas as cláusulas do contrato

no notário dos negócios do tudo ou nada

 

Lisboa, 17 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

 

 

2- Observação das aves



Estava de pé sobre a falésia, a dois passos do abismo e não tinha medo de ninguém.
As gaivotas eram rabiscos no céu e o mar de pequena vaga, encrespado, era todo seu.
Ele coroado de sal viu passar as cegonhas, nuvens dentro de navios, cães que levavam os cegos pelos ares e as aves de rapina junto das andorinhas.
Reconheceu o melro que falava a sua mãe, o seu vizinho do 
lado e pareceu-lhe que viu também, o de baixo. Tantos homens amputados, os que falam sozinhos e os outros, os dos bons ofícios e dos maus. Tudo aquilo lhe era estranhamente familiar, até a chuva que aparecia para os dias cinzentos.
Para onde iam com tanta pressa com os olhos virados ao contrário, será que fugiam?
De repente tremeu, não sabe se de medo ou daquele frio de há muitos anos, num país abandonado. Sentiu-se perdido, sem saber de que lado estava o abismo.

Lisboa, 17 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

Fogo posto de palavras


 

 

Tronco ressequido que ao lume se destina

onde ainda se reacendem despedidas

em pequenos afluentes de carvão e de resina

navegam palavras ávidas de encontros

onde se reabrem as antigas feridas

no lume brando e na memória cristalina

um unguento mágico que dos confrontos

da penumbra nos liberta e nos confina

árvore do pensamento que sonha o fruto

aves que são dilemas de flores e desencontros

e línguas de um fogo humano absoluto.

 

Lisboa, 16 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                      “Fire Bird” por Rodena Borisova

 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

1 - observação de aves




a ave

controversa

cruza a ilusão do arco-íris

como uma flecha

é uma palavra tão sóbria

tão de pedra pungente

tão de segredos e de cantos

sobre este céu submersa

e este sorriso de  lucerna

de asas abertas

no frémito de luz insone

das estrelas

que acolhem gritos

e vice-versa

arriscas o rumo ténue

da esperança cúmplice

deste sinistro adejar

dos fantasmas

de frio e de fome

ave perversa

que me devora
as entranhas
num silêncio urgente. 


Lisboa, 15 de Outubro de 2012

Carlos Vieira


                                                               “Shadow Bird” por JayZuck


sábado, 13 de outubro de 2012

A preparação física está a dar cabo de mim...


A preparação física está a dar cabo de mim. Hoje levei a minha filha à ginástica, esperei por ela uma hora e meia, os atletas das mais diversas modalidades passavam por mim, naquela pose de deuses acabados de sair das nuvens ou esbaforidos, muito perto da eternidade, serenos e elegantes como se a dimensão dos problemas da vida não lhe oferecesse qualquer receio e se por caso paravam, era para fazerem um compasso de espera, se concentrarem e definirem qual a linha de ataque mais favorável.

Eu quase deitado no sofá, pousava o olhar de mãe em mãe, de pai em pai, procurando-lhe o calcanhar de Aquiles e definindo-lhe o perfil deformado, liam os seus livros indiferentes à desenvoltura do meu olhar, pouco consentâneo com a proeminência do meu abdómen e preguiça do meu refastelamento, navegavam muito distantes e compenetradas, nesses longínquas latitudes que as últimas gerações de iPads e smartphones permitiam, à distância de um clique.

Depois olhei para a rua, de bicicleta ou em corrida inúmeras pessoas faziam o seu jogging matinal, de fim-de-semana, pouco a pouco fui ficando enjoado, o mundo era o estádio universitário que andava às voltas, na minha cabeça.

Eu estava cansado, muito cansado, as pessoas entraram para dentro de mim de ténis, faziam flexões, alongamentos, cambalhotas, um suor frio escorria, abundantemente, pelo meu corpo, sempre tive este tipo de excreções, muito à flor da pele.

Umas vinham para perder peso, outras por causa do coração, outras para ganhar músculo, para manterem a forma, ninguém queria morrer cedo, iriam vender cara a derrota, eu olhava perplexo para aquela gente tão boa, tão sã, tão regurgitante de vida.

Procurei acompanhá-los e logo tropecei, incapaz de compreender a gramática de todo aquele frenético movimento, sobretudo, inepto para encontrar o sincronismo, entre a velocidade feérica do estádio dos sonhos que na minha mente persigo e esta disponibilidade física e mental dos indivíduos a que a vida não pede qualquer urgência.

Despertei do círculo fechado desta reflexão, quando a voz suave da minha filha mais nova, me esclareceu todas as dúvidas, imbuída de uma inabalável veemência, no que respeita à esforçada grandeza, de alcançar ao ar livre, o peso pluma, a liberdade dos próximos quarenta e cinco minutos. Esforço derradeiro, de forma a convencer os que me rodeiam, de que tenho mais olhos que barriga.

- Vamos pai, hoje prometeste que irias correr comigo!

 

Lisboa,13 de Outubro de 2012

 

Carlos Vieira

 

 

Dívida



A dívida aumenta.
A do país e a nossa.

Cada manhã sabemos
que se acumula a dívida.
A grama que pisamos
é dívida.
A casa é uma hipoteca
que a noite vai adiando.
E os juros na hora certa.

Ao fim do mês o emprego
é dívida que aumenta
com o sono. Os pesadelos.
E nós sempre mais pobres
vendemos por varejo ou menos,
o Sol, a lua, os planetas,
até os dias vincendos.

A dívida aumenta
por cálculo ou sem ele.
O acaso engendra
sua imagem no espelho
que ao reflectir é dívida.

A eternidade à venda
por dívida.
A roça da morte
em hasta pública
por dívida.
A hierarquia dos anjos
deixou o céu por dívida.
No despejo final:
Só ratos e formigas.
 
CARLOS NEJAR
 


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Teu corpo meu barco imaterial



Quem sou eu?
Em que momento da tua luminosidade
me perdi?
Qual o teu lado mais negro?
Este frio que me transe
serão apenas teus olhos
que abandonam
uma parte de mim?

A tristeza que irradias
será a quietude onde te aguardo?
Tu me desconheces
e, no entanto, a tua dor  
se adequa à minha ausência.

Atingimos os mais altos cumes
e temperaturas
que proporcionam a duração das distâncias
que acolhem a memória das partículas
do teu corpo
que se pode decompor em música.

E, se a velocidade da tua sombra se apodera
dos meus dedos desertos
como posso sobreviver
neste dilúvio da chuva e de cinza
que cai
ou a este momento de trevas?

Sobre a carne cálida e sequiosa
nos teus lábios entreabertos
deflagram improváveis realejos
murmurando inéditas partituras,
reencontramo-nos a caminho
do mar amniótico interior e ancestral
no deslumbramento do teu corpo
aceso na curva das ondas
onde podemos de novo escutar
um sussurro, uma azáfama de beijos
no regresso ao eco líquido e seminal.

Karlsruhe, 9 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

                                León Ferrari  “Declaraciones de Scilingo, Nunca Más” 1995


domingo, 7 de outubro de 2012

Sonhos em 3D pela alameda


 

 

Filigranas de Outono, a bordejar o céu cinzento desta Alameda, de um tempo de tubos de

escape.

Nuvens de folhas, em remoinho perseguem-no, enquanto não o revestirem, não vão

descansar, enquanto não o cercarem no beco, como a fome de uma pequena matilha de cães

abandonados.

Aceitaria fazer de morto ou fingir de árvore derrubada, a história da intervenção dos bichos

mais adiante é que ainda lhe faz cócegas.

De resto, aquela humidade da terra que sente nas costas, pareceu-lhe o início de uma nova

vida ou talvez do crescimento das asas, sentiu-se por isso, naquilo que deveria ser a sua queda,

mais perto do céu.

Sentou-se num daqueles bancos clássico de tábuas de madeira pintadas de verde, a resistir ao

frio que anoitece nos seus pensamentos.

Divaga no xadrez de luzes dos prédios em frente. Vai reconstituindo os afazeres e conflitos

domésticos, daqueles vizinhos também eles de passagem, com tudo tão arrumado.

O bispo branco no seu movimento traiçoeiro e oblíquo comeu o cavalo, enquanto uma família

numerosa prosseguia, no seu frugal jantar.

Um casal de namorados que se preparava para a inocência desastrada do primeiro beijo

encostado a um tronco de uma amoreira, foi devorado pela máquina de lavar, da

marquise do 1.º andar, ali sobre a minha direita.

O mundo está estranho em Outubro, a Alameda está quase nua e quase morta, estranho

enigma é aquela nudez primordial.

Lá vamos, muito cegamente, a caminho do cadafalso, do caos, de olhos vendados, tropeçamos

na desconhecida pureza da neve, confundimos a alergia com o desabrochar das flores e

deixaremos de saber distinguir o perfume e as cores da fruta madura.

Nós os citadinos passamos a correr pela vida, porque estaremos sempre atrasados e quando

chegarmos ao destino, vamos descobrir que já é Verão e desistir de todas as outras

estações.

De qualquer forma, o aumento do preço dos bilhetes, não nos permite que nós tenhamos

outra dimensão nos sonho.

 

Lisboa, 7 de Outubro de 2012

Carlos Vieira