Mostrar mensagens com a etiqueta Poesia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Poesia. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 15 de junho de 2017

sem tudo desvendar

sem tudo desvendar
puxar a linha ao linho
da palavra e nele cerzir
um silêncio amável
entretanto escutar 
o reveludo da pele
Lisboa, 15 de Junho de 2017
Carlos Vieira

a cada tela ou poesia

a cada tela ou poesia
um postigo de cela
ou carta de alforria
Lisboa, 15 de Junho de 2017
Carlos Vieira

O reencontro da ternura


Sobeja
um pavio mínimo
no gesto oculto 
que te deseja
e faz espevitar
uma brecha de luz
até que se desata
o tal silêncio laborioso
nas danças
clandestinas do olhar
onde se espraia
a solidão das luas
o tempo acrobata
e se distende
o corpo devorado
nas línguas
do fogo posto
entretanto avanças
pela interlúdio
da madrugada
na sua indecisão
de lâminas frias
só elas
poderão suturar
as feridas reabertas
da tua alma
nada inocente
e enfim eliminar
a indiscreta volúpia
do sangue quente
a borbotar
na pressa da foz
de um fim.
Lisboa, 15 de Junho de 2017
Carlos Vieira


"Blue Lovers" Chagall

terça-feira, 13 de junho de 2017

Uma mão cheia de nada


À sorrelfa
se esgueirou
sorrateiramente
nunca mais ninguém
a viu
agora vive à sombra
da imperfeita memória
que por vezes mais afoita
e outras vezes timidamente
o espreita
quando desce
a tolerância ao frio
e na ausência se esfuma
e o deixa outra vez
uma mão cheia de nada
e outra de coisa nenhuma.
Lisboa, 13 de junho de 2017
Carlos Vieira


segunda-feira, 12 de junho de 2017

Logradouro

a poesia 
é tantas vezes
um logradouro
já não é casa
ainda não é rua
Lisboa, 10 de junho de 2017
Carlos Vieira

Avivar


Tocar
de ternura efémera
uma vida 
irrelevante
o seu espanto
anónimo
sublinhar
as reentrâncias
o estertor subliminar
avivar-lhe
a ruga e disfarçar-lhe
a nódoa negra
no olhar límpido
acrescentar
a sombra subtil
quase imperceptível
meticulosamente
abrir um caminho
para o mar
e para a palavra
inaudível
e deixar
que o seu vagar
vá destruir
o baixo relevo
que na areia
tornou possível
esculpir
a preto e branco
o seu retrato
e que o mar e a palavra
possam temperar
a tenaz do calor
e que deixe o sal
sulcar a cicatriz
e lhe devolva a cor
e que a dor
que cura
seja a mesma
que lhe faz sobressair
a beleza
e que contra
o esquecimento
viva o rosto sossegado
da tristeza
e ainda que pautado
pelo cabelo
do desalinho
resista
esse antigo acto de amor
amortalhado
de cambraia e pergaminho.
Lisboa, 11 de Junho de 2016
Carlos Vieira

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Depois de uma noite em branco


É inacreditável
como só agora me dou conta
como gosto de branco 
de preencher
esse lugar do esquecimento
onde percebi
o efémero das pegadas
e a penumbra de um voo
a agitar o líquen
na planície polar
e depois do virar
da página do degelo
o recomeçar da vida
no espanto da tundra
carater a carater
num texto singelo
erva a erva
percorrer a superfície
desértica e lunar
entre a impaciência
do animal
na palavra que encanta
e aquela que dispersa
o homem
momentos da angústia
de tanto sopesar
de cores carregadas
de ausência
e de repente uma branca
um desespero
que nos tolda
que te abraça
sucede-lhe a coragem
o instinto de sobrevivência
a caça
pelos secretos interstícios
da alegria
e num lampejo
que fez do lençol branco
camisa de forças
e com ele vincado
de insónias
amarrei a noite
fugi da reclusão
do seu beijo.
Lisboa, 29 de Agosto de 2016
Carlos Vieira

A subtil relevância dos objetos


Um par de chinelos brancos
repousam
sobre a carpete macia
e a luz da manhã
faltam-lhe os teus pés
o teu perfume
asas do meu dia.
Lisboa, 30 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


Apontamento de asa ferida



A pomba branca  
uma ferida no céu azul
que se despenha 
e no seu regresso
se desenha
num excesso de sul
e exaurida de sal.

Lisboa, 30 de Agosto de 2016


Carlos Vieira

domingo, 28 de agosto de 2016

De partida (para Maastricht)


Segue o teu rumo
prova o sumo
poderás beber do fel
partilha
esse teu belo sorriso
minha filha
tem o bom juízo
e uma certa loucura
partiste
nessa aventura
de quem não desiste
do sonho tão mais alto
que a tua altura
que é muita
visto que é sonho
ama como quem luta
enfrenta o infinito
e o medonho
desfruta
a chama acesa
no íntimo
de cada partícula
a beleza
de cada migalha
à mesa do universo
se o teu coração sofre
alguém te escuta
por ti tudo pode fazer
e nada ser
mais forte
que um verso
vislumbra
longe das luzes
o gesto mais nobre
sacia-te da melodia
que mais pura
vai brotar
no cume da montanha
nunca imaginada
e só a sua voz
te pode levar
além de ti
aqui comigo
ficou esse halo
do teu sorriso
que a madrugada
inveja
a amêndoa delicada
do teu olhar
uma longínqua
contingência
da lágrima
que agora
posso secar
apenas com a brisa
da minha mão invisível
ainda contigo
para te guardar
levaste
esse tão indiscreto
gesto inábil
de te amar
em silêncio
ficou e partiu
esse grito
em uníssono
contra a vil cobiça
e a injustiça
do mundo
minha querida
podes esquecer tudo
mas nunca
esqueças isto
este tão pobre
e tão valioso
legado.
Voa voa voa
minha filha
que o teu pai
está em Lisboa.
Aeroporto Humberto Delgado, Lisboa, 27 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


Constança

Histórias breves da guerrilha III


Era uma madrugada de verão, julho talvez, algures no século passado. desde o princípio da noite circundavam o sopé dos pequenos montes. tinham-lhe trocado as voltas pouca gente sabia porque o faziam. uma neblina filtrava as corolas pendentes dos arbustos nos estreitos caminhos e deixava-nos encharcados. pesavam-lhe as mochilas verde tropa, onde se aconchegavam rações de combate, acendalhas, primeiros socorros. pequenas ferramentas para a vida e para morte e todo o tempo para limpar armas. as armas ao colo eram crianças preparadas como nós para o fogo na alma do cano e do corpo. na abordagem a cada arbusto treinavam a guerra e não é mesma coisa. por isso havia tempo para os ângulos mortos da paisagem. as aves e os animais eram verdadeiramente os únicos incomodados nas emboscadas. ainda bem que tendo ido à tropa nunca fui à guerra e isso faz toda a diferença, para mal e para o bem e para o lusco-fusco.
Lisboa, 22 de Agosto de 2016
Carlos Vieira

Histórias breves da guerrilha II


junto
ao silvado bravo
é também o soldado
agachado
na emboscada
medonha da noite
indiferente
devora o melro
a negra amora
e o rapaz sonha
voltar à retaguarda
ao trilho de uma paz
proclamada
e acaricia a coronha
da espingarda
dedo nervoso
no gatilho
Lisboa, 21 de Agosto de 2016

Histórias breves de guerrilha I


Acordou
estremunhado
saiu da tenda
e o luar
iluminava
o ouro infinito
das dunas
e ocultadas
pela penumbra
das mesmas
sobre o silêncio
do deserto
e a profícua
solidão noturna
erguiam-se
certamente
fatídicas
cimitarras
e talvez o tumulto
do sangue
após
a eloquência
que pode ser
a memória
de um beijo
ou o prenúncio
de doces tâmaras
sob a elegância
curvilínea
das palmeiras
o seu coração
estremeceu
perante
a longínqua
nuvem de pó
e no impercetível
desvanecer
das estrelas
ouviu-se um tropel
no pensamento
no entanto
adormeceu de novo
a sono solto
revolto voltou
ao esquecimento
dos desesperados
e quando
lhe bateram
à porta
não se surpreendeu
ao encarar
os pobres soldados
ávidos
do saque prometido
aqueles
na sua infinita
misericórdia
abateram-no
de um só tiro
e deixaram-no
em paz.
Cegos
pela expectativa
das riquezas
e da glória
quem os levará agora
ao esplendor do ouro
nas dunas
e ao mel das tâmaras
na penumbra
das palmeiras
como desvendar
o segredo
que lhe impedirá
a insónia
e temperar
o fel da vitória?
Lisboa, 20 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

sábado, 27 de agosto de 2016

A indiferença e o amar dos tímidos


Volta à escrita como a criança
dá-lhe a mão a cada palavra
é uma oração que te revela
ponte suspensa na respiração
de passagem de uma vida
vegetando na tua margem
corrente que te leva e traz
uma espécie íntima de música
na penumbra de secreta solidão
descansa sob a abóbada da paz
cercada do eco das tuas palavras
enquanto as suas amordaçadas
são apenas olhares gumes
abrindo feridas no muro da espera
e o seu silêncio é cálice de veneno
reservado à sua morte diária
ou à alma cruel da sua dissidência.
Lisboa,13 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


País de fogo e cinzas


Hoje
o fogo
devora
a substância
vegetal
no coração
de um tempo
ancestral
que é também
nosso
amanhã
toda
uma vida
caberá
na sua mão
que é nossa
amanhã
vamos
de olhar
embargado
erguermo-nos
das cinzas
para reacender
o sonho
e esquecer
a raiva
a dor
que nos tolhe
e seremos
apenas
o ardor
do futuro.
Lisboa, 11 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


Fragmentos de uma cadeira de balouço


No baú da memória
e do futuro
revejo-te sentada 
no velho cadeirão de cerejeira
fustigada de reflexos
a tua nudez iluminada
debaixo do castanheiro
só tu podes pressentir
a navegação
dos ouriços dourados
no ribeiro
e o peso do silêncio
na sinfonia
que compões
que tens de ouvido
que te sopra a brisa
acrescentas-lhe
o resfolegar
no canavial
do amor escondido
um frémito antigo
de medo animal
vais pelo que te resta
da memória abaixo
num serpenteado gorgolejar
em gargalhadas e festa
de águas e de sentidos
a preencherem
as aceradas reentrâncias
de desejo
uma volúpia
de seixos e de espinhos
sobreposto
pode ouvir-se
o ritmo sincopado
do balouçar da cadeira
tão desconjuntada
na intermitência
da ternura
e na já distante
subtileza
de um murmúrio
as falas de amar
acompanhadas
de surpreendentes gestos
tão sublimados
de trevas
e de violência
numa rasgada urgência
amortalhados
em almofadas
e tardes de bordados
na frescura dos lençóis
pode ouvir-se ainda
o canto solícito
um festivo pestanejar
e o rumor do teu corpo
em guerra com o inacessível
a que se seguia
o esgar
e o irromper em voo de um grito
de um pássaro atónito
de prazer
perante o dardejar ao sol
e à chuva
a inclemência de um amor
destemperado.
Lisboa, 5 de Julho de 2016
Carlos Vieira


sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Minuete para um noite de Verão


Tu eras o céu
de um azul
suspenso
por inventar
onde podia
estrelejar
a palavra
e o gesto
subtil
ele efémero
morreu
porém
sufocado
de êxtase
em ti
e tu ficaste
cega
ignorando
o seu desespero
de brilhar
para ti
e quanto mais
o ritual
te ofuscava
menos
o podias ver
salvar
tu eras azul
por inventar
e foste
o céu.
Lisboa, 31 de Julho de 2016
Carlos Vieira
Imagem de autor desconhecido

Os Amigos


Os amigos amei
despido de ternura
fatigada; 
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.
Eugénio de Andrade, in "Coração do Dia"

Ferreira Gullar


Escriturar

depois que lhe quis dar voo
não volto a ler o poema
porque sempre descubro
o escriturar das imparidades
Lisboa, 30 de Julho de 2016
Carlos Vieira