quarta-feira, 28 de novembro de 2012

3 – Interlúdios


 

 

Sentiu-lhe o olhar como um apelo

do mar

a entrar por si a dentro

naquele equilíbrio

precário

 

sentiu o toque suave

da sua mão

o seu calor

como um rio que corre

desconhecido

dentro de si

 

depois viu-o afastar-se

o seu adeus

e o seu sorriso abandonados

como gaivotas

sem estação

sentiu crescer

um novo vazio dentro de si

 

terá percebido mais tarde

que no furto

da sua carteira

a destreza subtil

é a de enganar

a solidão.

 

Lisboa, 28 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

 

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Poema sem perdão, nem arrependimento


 

 

Não me arrependo

de fazer cimento

da bolha na teimosia do desnível

e da falta de poesia como se faltasse o sentido

Não me arrependo

de ir fazer tijolo

e das mãos ásperas onde oscilava um fio-de-prumo

da falta de esquadria e de querer endireitar o mundo

Não me arrependo

de escavar os alicerces isso são ossos do ofício

cada um escava todos os dias os alicerces onde deixará

os ossos a carne e os vícios

Não me arrependo

de começar a casa pelo telhado

sonhos são sonhos

e não há sonhos inacabados

Não me arrependo

da diminuição do risco

e sei da acrobacia dos andaimes e das mortes sem capacete

e sei de outros conhecimentos que agora me são inúteis

Não me arrependo

da vida suspensa num guindaste desgovernado

somos tantas vezes aves a quem cortaram as asas

Ícaros de asas compradas a crédito 

Não me arrependo

das vigas de pré-esforçado inventando esconsos e tectos e sótãos

e com isso construir no primeiro andar 80m2 de céu

de um futuro super homem

não me arrependo

das casas que se ergueram a esconder o sol

e das janelas por onde entrou sem pedir licença o primeiro crepúsculo

não me arrependo

dos muros que construi à minha volta e à tua volta

e de outras tantas portas

neste labirinto que é a nossa vida de construir as casas para os outros

não me arrependo

da retórica do direito à habitação e da indiscutível qualidade dos acabamentos

era um pobre diabo

numa cidade de betão e com nervos de aço

não me arrependo

pois gosto de pensar

que sou feito desta argamassa de antes quebrar que torcer

não me arrependo

sei o que vale uma criança que brinca à volta daquela casa

que ao acabar-se nos fugiu das mãos

não me arrependo.

 

Lisboa, 27 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

2. Interlúdios

O casal de namorados

abraça-se
no exato momento
em que o metropolitano
entra na estação
sigo-lhe o alvoroço

do último beijo
cego e surdo
sem travão 
pois perdem
o último metro
que com seu único olho
do fundo do túnel
ainda lança
ao casal de namorados
um olhar desesperado
de última viagem.

Lisboa, 26 de Novembro de 2012
Carlos Vieira

                               “Kiss” por Thokrates

Vociferar

Vociferar
é atirar para o céu
garras e dentes
e estômago
como se fossem
estrelas e luas
cintilantes
ou talvez um vómito
cuspido
num rasgado véu.

Vociferar
é dizer a uivar
dos inocentes
o sangue derramado
e aproveitá-lo
num poema
onde se ouve
ancestral
o ruído das algemas
que se escreve
nos anéis das letras.

Vocifera
quem nunca se cansa
de arranhar  no papel
e na garganta seca
nas entranhas
onde rangem
os cânticos da galera
onde se foi escravo
onde se fez lobo
vocifera
quem não se cansa
da raiva
de remar a espera.


Lisboa, 26 de Novembro de 2012
Carlos Vieira


“Slave market” Dali

“A minha quinta”



Admiro ainda a profusão dos telhados de vermelho, do rosa velho, atacados ali e acolá
pela ferocidade verde das heras. Este conjunto de edifícios, á beira-mar de um serôdio
romantismo, onde outros jazem, nós repousamos dez minutos.
Depois a direito, o nu prateado das árvores mutiladas debatendo a nossa fragilidade
nas alturas, onde sinos voltam a tocar, nunca saberemos porque se agitam.
Olho para a tristeza dos jardins e das estátuas, mantendo as distâncias, nunca se
pronunciando.
Prossegue a inutilidade dos peixes dos lagos e dos repuxos, embriagados de água,
cercados do mar amarelo das folhas de Outono que transformam a queda numa dança
improvisada.
Os muros caiados andam à sua volta desenvolvendo o bolor ou a patine da história,
conforme os gostos.
Depois nós pasmados, fechados a ferrolho nesta quinta à oito séculos, vegetando na nossa
tolerância, neste desconforto, onde os gatos nos roçam nas pernas amaciando o pensamento
e os cães vêm mijar.
Tudo isto faz menos sentido que o coice de um cavalo, a errância dos pássaros ou a amargura
das laranjas, pois todos teimam em iluminar a estação, a nos fazer ver estrelas e pequenas
assombrações, por mim, vou sobrevivendo à veemência agridoce das palavras.
Não havendo mais nada que enaltecer vou zurzindo na coerência das cores e dos gestos, nesta
quinta de família “à beira mar plantada”.

Lisboa, 26 de Novembro de 2012
Carlos Vieira

sábado, 24 de novembro de 2012

Paisagem interior



Entre a mulher e a realidade
apenas a espessura do vidro
onde agora escorre toldada
sua imagem na miríade húmida
da água da chuva e do vento
por osmose as suas lágrimas
descem saciando a sua sede
de circunscrita flor interior
do lado de fora na floreira
murcham folhas no Outono
corre ofegante o moinho
espelhando-te revoltada flor
teu solitário coração que bate
solidário lá fora furiosamente.

Lisboa, 24 de Novembro de 2012
Carlos Vieira

O que me emociona...


o que me emociona ao escrever é lançar a rede

pela manhã pescar as já tão parcas palavras

deixo que me seduzam, relendo escuto, sopeso

infinito desejo do cristal das que me calam

enquanto no meu peito presas outras clamam

são sílabas de luz que anseiam do rio o leito

outras peixes que exaltam no açude do poema

o fulgor de um sonho de foz em escamas e sal

 

Lisboa, 21 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

                 China lonely planet escape, cormorant fisherman Huang on the Yuolong River

                 Autor desconhecido

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Percepção


Percepção

 

Não reconheces mais este lugar

se tu própria aqui te desconheces

como te poderias encontrar

 

aliás tem sido essa a tua sina

pretexto para te abandonares

na busca da sombra que amadureces

 

vendo-te chegar mudas de página

mudas de cor e mergulhas na neblina

 

o que te entristece nesta selva urbana

não é ser fria é ser com os frágeis desumana

 

é a escassez  e a brevidade dos momentos

dos sorriso que se rasgam no teu rosto

é uma ausência suave que enlouquece

 

se somos a cicatriz em que ficamos

ou o tumulto de onde partimos a contragosto

isso são meros sinais dos tempos

 

Lisboa, 21 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                         Imagem retirada da Internet de autor desconhecido

domingo, 18 de novembro de 2012

Álibi


 

 

Naquele preciso momento

na perplexidade

na indiferença

do golpe

não era ele que estava ali

quando a lâmina encetou

o seu vibrante caminho

sem retorno

e aflorou o coração

após penetrar pela floresta

do interstício vertebral

era impossível ser ele

quando na boca soçobrou

a derradeira palavra

exclamando a solidão

e o olhar se despediu da Terra

fitando-o atónito

perante a perfídia

não poderia ser ele

que estava para lá do tempo

antes das casas e do código postal

dos números de polícia

dos cidadãos e dos deuses

desses de todos os dias

que cantam e amam

uns por cima dos outros

ou lado a lado

ele era agora

aquela arma branca

discurso e flor ensanguentada

sobre a mesa

e inútil de novo

ele era agora

as amáveis ruínas

que sobram na luz da tarde

esse puro punhal

que algures

nos torna no mínimo cúmplices

nessa morte fulminante e sem motivo

de abreviar o mundo

aos frágeis heróis

pelos cobardes do dia a dia

 

Lisboa, 18 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

 

sábado, 17 de novembro de 2012

1. Interlúdios



 

I

Entre a folhagem

do teu olhar

as suas mãos

eram pássaros

que ali iam

pernoitar

 

II

Os teus caracóis

de ouro

a desaguar

nos ombros

a luz incrédula

do farol

e o abraço azul

do mar

no alabastro

do teu pescoço.

 

III

O sabor

a sal e a suor

nos teus seios

a arfar

na penumbra

o cristal puro

do teu rosto

tranquilo

e a breve

tristeza

das palavras

por dizer.

 

Lisboa, 17 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

                                                   
                                                  Pintura de Marc Chagall

 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Versos a um amor desconhecido


 

 

Percorreu a espiral

do seu torso

e perdeu-se

para sempre

nunca se saberá

quem foi.

 

Contorna o veludo

da sua pele

entre miragens

e alucinações

e deixou de saber

quem é.

 

À flor dos lábios

inventou um alfabeto

só para eles

nesse labirinto

de emoções

desconhecia-se

o porquê.

 

Entre dentes

o rumor

acutilante das palavras

que murmurou,

até quando?

 

Ficou cego

no arco tenso

das suas pernas

e não sabia morse

ficou para sempre

sequestrado,

entregue a si próprio.

 

A sua alegria

era a dele

o sol de inverno

era dele

as suas lágrimas

eram suas

correram desejadas

não se sabe,

por onde

nem para onde.

 

O sexo sobrevoava

o tempo lento do corpo

era um relógio de água

que dava corda ao pensamento

à raiz do fogo

às crinas do vento,

ninguém sabia

o que faziam ali?

 

Pediam as suas ancas

o rumo estreito

das suas mãos

acalmando as correntes

os espasmos da pélvis

fechavam-se seus olhos

tudo tinha acabado

havia tempo

nenhum dos dois sabia

os termos do armistício.

 

Lisboa, 16 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

Foto: 14 de Agosto de 1945: Um marinheiro americano beija uma enfermeira para celebrar o fim da II Guerra Mundial. A enfermeira, Edith Shain, morreu em 23 de Junho de 2010, com 91 anos.

 

 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Reconstituição



Um corpo nu e único admirável
amputado de todos os sonhos
e pétalas
e do desassossego das gaivotas.

Nele ainda resvala
o vórtice do canto
o seu perfume reconhecido
a incendiar
ainda a epiderme.

Respira-se a alusão
a um mar de tranquilidade
interrompida
por conchas de espanto
um corpo vencido pelo cansaço
por um sono
de areia e sal.
  
Na praia impressos
os pés descalços
da mulher recém atropelada
pelo real 
pelas ondas que se enrolaram nas pernas
no sexo
de um refluxo apenas vegetal.

Mulher abandonada que o mar beija
em decúbito dorsal
e na rebentação
liberta
e enleia de algas
abusa da fragilidade
e a devolve à terra
.
Sempre este mesmo mar
que tão violenta
e profundamente
nos quer
e nos mata.



Lisboa, 15 de Novembro de 2012
Carlos Vieira


                                          Imagem retirada da Internet de autor desconhecido

2. Jardim de Inverno


 

 

 

como se fosse uma granada

uma explosão de sementes e frutos

 

reinventamos  do nada

a terra de ninguém

 

soerguem-se abandonadas lutos

de viúvas, solteiras e outras mães

de demasiadas filhos mortos

 

a mão na garganta do fumo e do gaz

estrangulando o grito

 

a corola e o pólen do silêncio

e as cinzas das fogueiras

 

os farrapos das nuvens cinzentas

o manto do desespero 

 

despojos do saque

a face da vergonha

 

e a solidão azul do lápis

os números desprezíveis de baixas

das batalhas

 

no arame farpado das trincheiras

escorrem dos mortos e feridos

tão naturalmente

flores vermelhas

 

 

 

Lisboa, 14 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

1. Jardim de Inverno


como o cálice de um grito
que atravessa um céu de chumbo
na sua haste um sequestrado rio de fogo
um pintor flamengo faz na evidência da tulipa
deflagrar a generosidade do início de um novo mundo
cicuta que desperta a demência que lhe corrói as entranhas

Lisboa, 14 de Novembro de 2012
 Carlos Vieira



         Photo by Rob Galbraith

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Falésia...

Falésia
ou clepsidra
do  pensamento
e última muralha
ou inatingível fronteira
contra um mar de desejos
e um deslumbramento de terra
âncora que germina dentro de nós
esplendor que nos impede de navegar
se dela se vislumbram os confins da bruma
a doce obscuridade e o odor labiríntico da carne
ossos que pedem uma volúpia de aves em pleno voo
barcos e animais inquietos lavrando com a  pedra da tarde
na penumbra do sangue e do tempo um rumo de silêncio e espuma

Lisboa, 12 de Novembro de 2012
Carlos Vieira

                                        “Homem na falésia” por Caspar David Friedrich

domingo, 11 de novembro de 2012

Delírios


 

 

A casa soergue-se agitada

em pânico abandona a rua

abandona-me na rua.

 

Eu desperto tardiamente

no meio do nada

e de dentro de um poço

olho para o céu que derrama

o seu vómito azul inconsequente.

 

As nuvens são animais ferozes

com dentes de chuva

um bando de gente volúvel

e de luzes trémulas

todos os animais enlouquecem

à sua volta.

 

Só confio neste lugar

de onde puxo a paisagem pela janela

com uma corda

fica um pouco apertada

nas minhas duas assoalhadas.

 

A corrente de ar faz bater

a porta da cozinha

no entanto sinto-me sufocar

perante a imobilidade do mundo

e o beco sem saída das ideias.

 

Todos os objectos me fogem das mãos

como os cães

que me roubam a comida.

 

Neste delírio tremens

assisto ao desabar

de tudo o que acreditava.

 

Ouço a campainha

afinal alguém me encontrou

neste manicómio

simulacro da eternidade

afinal sempre vão executar

a ação de despejo.

 

Lisboa, 11 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                           Jean-François Dupuis, “Delirium”

 

 

 

 

sábado, 10 de novembro de 2012

Líquenes, exercícios de vida mínima



 
 

Líquen

sussurro subtil

caligrafia de seiva

sobre a pedra inacessível

flor de um fogo breve

aroma de ave ávida de sonhos

 

líquen

voz que se ergue de erva-doce

sob as asas da neve

que irrompe na noite

das entranhas da terra

pelas frestas do tempo

cujo focinho empurra o sol tímido

pela madrugada

 

líquen

planta onde se acende

o reflexo rumor

de precários insectos

que viajaram

nos caprichos de vento

e que devoram agora

a última esperança

de uma vida vegetal

 

Lisboa, 10 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                 “Liquen” Myriam Le Borgne

 

 

 

 

 

Aula de ginástica da Matilde


 

 

Eis -me aqui

a multiplicar os pinos cambalhota

e as rodas

na serenidade

dos seus grandes olhos verdes

a sorrir nas pontes

vendo-a sair ilesa e de pés descalços

dos flic’s para trás e para frente

regressando a si

ao seu rabo de cavalo

à sua elegante desenvoltura

nesta girândola de acrobacias

puro poema do meu sangue

em movimento

e naquele momento

esqueci a ginástica do fim do mês

sem tapete

sem futuro

e tantos outros filhos

de equilíbrio instável.

 

Lisboa, 10 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Ontem...


Ontem

tive à espera do metro

de chapéu-de-chuva aberto

como quem segura

um pensamento

uma nuvem

quando entrei na carruagem

não percebi

aquela chuva de sorrisos

 

Lisboa, 9 de Novembro de 2012

Carlos Vieira