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sábado, 25 de janeiro de 2014

Seria primeiro...


Seria primeiro podridão fétida, depois uma pasta pegajosa, no fim uma poeira que se não distinguiria do outro pó. Aquilo por que éramos, sentíamos, conhecíamos, existíamos, nos podíamos tornar um corpo triunfante, acabava connosco, não nos sobrevivia: apenas durava mais o cabide daquilo, sem que sequer pudesse aguentar-se em pé. Revi o esqueleto que havia no liceu, pendurado numa haste de ferro, como um enforcado, e com os ossos presos uns aos outros por araminhos. E a vida era isso: a duração daquele conjunto de carne, pela qual a nossa consciência, as nossas faculdades, o nosso «eu» existia.

Sinais de Fogo, Jorge de Sena 

domingo, 3 de junho de 2012

Camões dirige-se aos seus contemporâneos

 
 
 
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
Para passar por meu. E para os outros ladrões,
Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

Jorge de Sena

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Sinfonia Fantástica, de Berlioz


Programas, poetas, sonhos de ópio,
 pastores pipilando, e as guilhotinas,
 e o sábat das bruxas ao som do Dies Irae,
 comédia melancólica e sarcástica
 de romantismo sentimental e crítico
 desesperadamente triste de si mesmo,
 na solidão do espírito perdido
 num mundo burguês sem fantasia,
 sem mais maravilhoso que o da infâmia,
 sem mais espanto que o da hipocrisia.
 Tudo isto com bem pouca reserva,
 bastante vulgaridade, muito efeito fácil,
 e um colorido por vezes novo rico
 como os cristais e as pratas dos barões banqueiros.
 Mas é música, violentamente
 música. Agressivamente
 música. Os ritmos
 de cadência, colorido, timbres,
 estilos, tons - é tudo música.
 Da solidão romântica imensamente pública - mas solidão.
 Da amargura romântica tremendamente amena - mas uma amargura.
 Da raiva de não ser o mundo uma obra de arte,
 um indivíduo, a glória, a liberdade.
 Música pungente, irónica, raivosa,
 ainda saudosa das doçuras clássicas
com deuses imortais (de pedra branca).
 Se não sentimos isto, porque a grosseria
 cresceu à escala cósmica, nenhuma culpa
 acaso cabe a tais visões sonoras,
 em que a tristeza sabe imaginar-se
 tão puramente um canto de oboé,
 com percussões pontuando o mundo a que assistimos,
 ao som dos arcos e metais:
 grandeza caricata deste inferno amável
 (cheio de róseas profundezas - e assassinos).

23/10/1964
Poesia II, Jorge de Sena

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Cinco Natais de Guerra - 1947

Cinco Natais de Guerra

1947

Mécia

Não é já de Natal esta poesia.
E, se a teus pés deponho algo que encerra
e não algo que cria,
é porque em ti confio: como a terra,
por sobre ti os anos passarão, a mesma serás sempre, e o coração, como esse interior da terra nunca visto, a primavera eterna de que existo, o reflorir de sempre, o dia a dia, o novo tempo e os outros que hão-de vir. Jorge de Sena, Poesia-I

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Light breaks where no sun shines - Dylan Thomas


A luz rompe onde o sol não brilha;
Onde o mar não corre, as águas do coração
Avançam suas marés;
E, quebrados espectros com pirilampos nas cabeças.
As coisas da luz
Insinuam-se na carne onde carne não cobre os ossos.

Um círio entre as pernas
Aquece a juventude e o sémen e queima o sémen da idade;
Onde sémen se não agita,
O fruto do homem incha nas estrelas,
Brilhante como um figo;
Onde cera não há, o círio mostra os seus cabelos.

A alvorada rompe atrás dos olhos;
De mastros do crânio e dedos dos pés o soprante sangue
Desliza como um mar;
Sem muros nem estacadas, os borbotões do céu
Esguicham para a vara do vedor
Num sorriso o óleo das lágrimas.

A noite nas órbitas arredondada,
Como uma luz de paz, o limite dos globos;
O dia acende o osso;
Onde frio não há, as ventanias desprendem
As vestes do Inverno;
A película da Primavera pende nas pálpebras.

A luz rompe em lotes secretos,
Em pontas do pensar onde os pensamentos cheiram mal na chuva;
Quando a lógica morre,
O segredo do solo cresce pelos olhos dentro,
E o sangue salta ao sol;
Por sobre os terrenos vagos a alvorada pára.
...
Light breaks where no sun shines;
Where no sea runs, the waters of the heart
Push in their tides;
And, broken ghosts with glow-worms in their heads,
The things of light
File through the flesh where no flesh decks the bones.
A candle in the thighs
Warms youth and seed and burns the seeds of age;
Where no seed stirs,
The fruit of man unwrinkles in the stars,
Bright as a fig;
Where no wax is, the candle shows its hairs.
Dawn breaks behind the eyes;
From poles of skull and toe the windy blood
Slides like a sea;
Nor fenced, nor staked, the gushers of the sky
Spout to the rod
Divining in a smile the oil of tears.
Night in the sockets rounds,
Like some pitch moon, the limit of the globes;
Day lights the bone;
Where no cold is, the skinning gales unpin
The winter’s robes;
The film of spring is hanging from the lids.
Light breaks on secret lots,
On tips of thought where thoughts smell in the rain;
When logics die,
The secret of the soil grows through the eye,
And blood jumps in the sun;
Above the waste allotments the dawn halts.

Dylan Thomas (1914 - 1953)   
tradução: Jorge de Sena

domingo, 12 de fevereiro de 2012

A Coat / Um Casaco de W. B. Yeats

A Coat (W. B. Yeats – The Responsibilities, 1914)
I made my song a coat
Covered with embroideries
Out of old mythologies
From heel to throat;
But the fools caught it,
Wore it in the world’s eyes
As though they’d wrought it.
Song, let them take it,  
For there’s more enterprise
In walking naked.

Um Casaco

Fiz à poesia um casaco
Todo bordado e com rendas
De velhas mitologias,
Do pescoço até aos pés;
Mas os asnos mo roubaram,
Usaram-no aos olhos do mundo,
Como se o tivessem feito.
Poesia, deixa-os usá-lo,
Pois que há muito mais coragem
Em passear-se em pelota.

Tradução de Jorge de Sena