sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Esquisso para um auto-retrato


Aqui estou no cume
por cima das nuvens
o mundo todo
e os deuses
à minha volta
nos corações de pedra
batem furiosamente
os uivos do vento
e grasnidos de milhafre
alcandorado
aqui não sobrevive
nem o efémero líquen
ou as memórias
libertas de raízes
nem o perfume da urze
ou cintilações de quartzo
esta é uma porção
de terra nua
que por agora me pertence
que me dilacera árida e dura
a carne macia
vivo estribado nesse espigão
do amor pela vida
e nesta corda que a pendura
sobre o precipício
vivendo no limite
vivemos suspensos
sobre o inferno e o paraíso
aqui estou eu
no pico da montanha
com serventia
de vistas para Espanha
e passaporte
de cidadão do mundo
onde vivo
possuo um plano
imaginário da ponte
para um céu
aqui com pés no chão
nasce um rio
onde corre o sonho
de viajar iluminando
o medo
e as trevas
e o desconhecido
reinvento o abecedário
da solidão
e sou por um momento
pleno proprietário
da terra
antes que ela
me possua a mim.
Lisboa, 17 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Pintura de Caspar David Friedrich

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