terça-feira, 15 de maio de 2012

Demência (1)


Bateram à porta e bateu o meu coração, tem meses que não os oiço, nem as pancadas, nem o coração. Estou cada vez mais velho e mais surdo. Quem poderá ser, a estas horas, o que pode ser?!

Espreito pelo óculo embaciado, espreito o rosto vagamente familiar que sorri do outro lado do mundo. Será um anjo ou a morte. Tudo me parece muito suspeito que venha sem avisar. Não abro a porta a estranhos.

Agrada-me este silêncio na casa, de cada ruído ter apenas a minha explicação, a minha respiração e a intermitência dos carros no fim da noite, da rua e a merda da torneira que pinga. A vizinha de cima discute, de forma aberta, a sua infidelidade e a do marido. Amor com amor se paga.

Gosto dos livros sobre a mesa desfraldados na corrente de ar, do cd que avança às voltas até se perder, no labirinto que criou. Onde raio se meteu a chave da despensa. Lembro-me no entanto, do toque suave da tua camisa de seda e da tranquilidade com que te despias e eu já não encontrava a saída.

Depois desapareceste, num ápice a tua silhueta curvou-se e entrou para aquele luxuoso carro preto que te veio buscar. Naquele dia chovia ou foram lágrimas que eu requisitei para aquele momento. Desde sempre cultivaste uma certa mania da perseguição.

O tempo veio mesmo a propósito e quase consegui apagar-te. Apenas deixaste detalhes, coisas marginais, aos teus olhos e olhar sucederam-se coisas maiores, relâmpagos e trovões, depois de ti, seguiram-se mais tempestades e o Inverno aconteceu mais vezes do que aquilo que era comum e foi o dilúvio.

Fico aqui a aguardar, no fundo foste tu que me conquistaste e fui eu que te perdi, não existe pior conjugação de resultados, pelo menos, podia haver uma forma de te desentranhar deste quarto e do teu perfume não estar sempre tão presente.

Neste caos em que o mundo para mim se transformou, a espaços reencontro-te aqui em casa, não te raptaram completamente, fui sobretudo eu que te deixei meu amor, tu sabes o caminho do meu coração e tu deixaste de habitar a minha memória.



Lisboa, 15 de Maio de 2012

Carlos Vieira


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