sábado, 3 de outubro de 2015

Breviário dos instantes


Sento-me
na madeira escura
de carvalho 
dos bancos de igreja
não vim pedir
perdão de nada
ou atrás do infinito.
Sei que encontraria
ali aquela
a luz velada
que perpassa
pelos vitrais
a discreta
réstia de um grito
da alegria.
Iria ser
banhado
pelos reflexos
imperceptíveis
na subtileza
de um óleo
de autor anónimo
o soluçar línguas
de fogo e dourado.
Vou ouvir
murmúrios
de lanternas
e confissões
o restolhar
das sandálias
no desgastado
calcário
as minhas
a aperta-me
os calos
do dedo grande.
Comungo
do eco gutural
das preces
por debaixo
da cúpula
de tanto
esquecimento
sustentada
no frio das colunas
onde se encostam
abstractos vultos
em recolhimento.
Regresso
à intermitência
das velas
que lá vão consumindo
pedidos
desesperados
e gratidões
absurdas.
Sucendem-se
aos olhares
embargados
o indagar
de respostas
em Cristos
crucificados
outros ajoelham-se
compungidos
debruçados
sobre si
próprios.
Lisboa, 2 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

A lua saíu para a noite

a lua saíu para a noite
e surpreendeu a coruja
a roubar azeite no lagar
isso foi uma clarividência
Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Écloga do vale do Lena


Eu tinha cinco anos
eram oito da manhã
mais coisa 
menos coisa
do alto da encosta
ao cimo do Outono
observava o vale
estremunhado
havia um castelo
à esquerda
e Rodrigues Lobo
com seus salgueiros
e rouxinóis
um incansável rio
a serpentear
estendiam-se
a perder de vista
na outra margem
a fazer a grande curva
de nuvens rodeado
um pequeno monte
nessa altura
tive um amigo
o único milhafre
da minha infância
esperava que chegasse
para levantar voo
do alto da faia
depois sobrevoava
de asas abertas
o meu mundo
que era do tamanho
dos sonhos.
Lisboa, 3 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido, retirada do Blog "O Prazer da BTT" perto da nascente do Rio Lena
que infelizmente como eu, corria muito mais, na minha infância!

Voltar ao amor sobre as dunas...

voltar ao amor sobre as dunas 
devorar das camarinhas
pérolas brancas testemunhas

Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira


O cheiro limpo da resina...

Eo cheiro limpo da resina
no pinhal e a memória única
do sabor das púticas*
Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira


*Tubérculos de magnifíco sabor que apareciam de forma pouco abundante nos pinhais da zona oeste, mais conhecidos por pútegas e búxigas;

Os arbustos do crepúsculo...

os arbustos do crepúsculo
estremecem de permeio refulge
a cauda de fogo da raposa

Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira



DECADÊNCIA DAS PALAVRAS

“Nem com seu lápis nem com seu bastão nem
Nem luzes luzes quero dizer
Nunca coisa alguma
Mais nada
Nunca mais”.
Samuel Beckett


Emboscado
no desencanto
e na culpa
do desencontro
espero-lhe
as palavras.
Espero as palavras
as certas
as setas
do sacrifício
as da dor
pacientes
com clarividência
a palavra chave
que nos salva.
As palavras
na sua inteira exactidão
impertinente
bichos desconfiados
furtivos
sôfregas de ternura
num amedrontamento
ancestral.
As palavras
mo timbre
daquela voz
variações
de breves reflexos
avistamentos
despojadas
amparadas.
As palavras
destroços
na corrente
de um caderno de apontamentos
de cor
branco sujo
que escorreram leitosas
de uma qualquer lua
lacrimejante.
Palavras
a que retiram a substância
de permeio
a consistência
dos homens
que dão o dito
por não dito
e dão significado
ao tempo.
Palavras
bofetadas sem mão
de luva branca
ganindo
aos astros que do alto
nos cercam e nos espiam
neste imenso deserto
campo de concentração.
Palavras
cobertor
na noite que arrefece
o nosso sangue frio
e o nosso sangue quente.
faltam-nos
as palavras
o discurso
o directo
ko.
Aos poucos também
nós e a lua e as palavras
desistimos
somos ocupados
pelo vazio
exaustos
deitamos-nos
na mesma cama
que fizemos
e naquela outra
que nos foram fazendo.
Palavras
que se aconchegam
na repugnante
complacência
dos que afirmavam
a pés juntos
que estavam connosco
juras de fidelidade
e nesse concubinato
concupiscente
somos em silêncio
cúmplices
da voraz ditadura
da imagem e do ruído.
Assistimos
calados
ao declínio
do valor da palavra
das inflexões e das pausas
da sugestão
do que fica por dizer
das conversas
que são como as cerejas
das histórias
onde nascem histórias
conformados
ao peço palavra
e ao tenho dito.
Olho porém
para as folhas
e para as aves
que se agitam
no cume das faias
como se fossem
mãos e gritos
que sobem a pulso
as árvores da vida.
Faltam-me
as palavras
para descrever
aquelas da coragem
e da esperança
que sobem
aqueles troncos
prateados
então calo-me
e curvo-me
por esta ordem
está tudo dito.
Lisboa. 30 de Setembro de 2015
Carlos Vieira