sábado, 15 de março de 2014

Mulher papoila


tu és uma única papoila
o fogo efémero
a luz que me consome

és o sangue que tece a flor
silêncio que te adormece
e que me inebria

resistes à última brisa
do nosso Inverno
ergue-te o veneno em aceso rubor 

o teu aceno romântico das causas
nas casas um grito encurralado
corre agora flor vermelha pelo prado verde

se o meu olhar é só para ti 
rainha sem reino porque danças?
por quem?

no meio da seara
balança a tua haste frágil
a tua voz rouca

destilas o ópio
a coroa de um abismo de silêncio
na tua corola 

na minha boca a pétala desfeita 
breve alusão a sexo 
uma inevitável sofreguidão 

sigo por aquele caminho rural
onde cresci e procuro
o reencontro do teu beijo traiçoeiro

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira










sexta-feira, 14 de março de 2014

Mulher puzzle

Mulher puzzle

Insinua-se
paralela e assimétrica
e pura

Observa-me
demoradamente
a olho nu

No verso
soergue-se exausta
rima

Despe-se
à ubiquidade do desejo
louco

Emerge 
e intrépida se entrega
solta

Sei-a de cor
a água da boca cresce
a sede

O olhar cega
em progressão geométrica
lenta

Penteia 
permanece o aroma nos meus dedos 
os cabelos

As palavras molhadas
desprendem-se dos seus lábios
aves de rapina

A tua nuca
pode ser o meu lugar de exílio
a omoplata

Atrevo-me
ao infinito ao palpar teus seios 
túmidos

Abraças-me
e desisto do significado das palavras
só murmúrios.

Lisboa, 14 de Março de 2014
Carlos Vieira



Na parietal...

na parietal esquerda do seu rosto 
uma pequena cicatriz
rumor feliz no afago de um beijo

Lisboa, 14 de Março de 2014 
Carlos Vieira

Revê-la...

Revê-la
no desvelo
que revela.

Lisboa, 14 de março de 2014
Carlos Vieira

O jogador



A verdade
é que não tinha 
mais tempo
na ampulheta
a areia escou-se
aquela fora 
a sua derradeira
jogada
daqui para a frente
era a doer.

Lisboa, 14 de Março de 2014
Carlos Vieira

Uma bóia...

uma bóia de esferovite na areia
salvou-se do teu corpo
uma vaga ideia

Lisboa, 14 de Março de 2014
Carlos Vieira

À espreita


Na janela
um homem de cabelo grisalho
a barba tem dias

os óculos 
quase lhe caem da cana do nariz
como se tivesse feito um intervalo na leitura
ou adormecido
-Terá morrido?

dado o dia e a hora 
deve estar reformado
retirou-se
fugiu
- Já não conta!

sem pestanejar
olhava para a rua 
como quem olha 
para a corrente de um rio
demasiado forte
onde já não pertencia
- Não adianta!

nem um aceno ou um trejeito
tem os vidros fechados 
não vá apanhar alguma pneumonia
- A partir de uma certa idade
um homem tem que se resguardar!

nesse olhar 
por vezes baço
quase espelhado
é a multidão anónima que passa
- Já não reconheço ninguém!

deve ser esse sopro ténue de vida 
e de solidão 
que o deixa amarrado
àquela cadeira de palhinha
naquela tarde 

faltar-lhe-ão as forças 
e a verdade
é que a vontade
também já parece
não ser muita

à janela
um homem de cabelo grisalho
a barba tem dias
morreu 
mal sentado
a espreitar a vida
de onde se escondeu da morte


Lisboa, 14 de Março de 2014
Carlos Vieira