domingo, 29 de setembro de 2013

Crimes sem castigo



Um punhal de onde escorre sangue é apenas um peixe debatendo-se fora de água. O cachorro que o fareja é um pedaço de nuvem, de metal caído do céu a ladrar no areal, ouro velho a debruar vultos de saudade, de rochedos e naufrágios.
Na moldura da manhã de prata deste mar, o punhal, o sangue fresco e dissidente é a única flor possível, no fim de Setembro.
Um crime por desvendar, uma nota dissonante, no silêncio de bronze.
Daqui a pouco a maré tudo isto irá apagar, os vestígios de luta inglória ou de dança macabra, pois claro. Depois de ter calado na noite cúmplice o grito exangue, vai agora devolver o peixe punhal ao mar.
Na solidão dos búzios poder-se-á escutar o verdete de um grito naufrago, de um punhal preso entre dentes ao fundo atlântico.
Agora, a única esperança de preencher este vazio de culpa está nesta memória de sangue, no olfacto de um cão vadio, reunir um assassino com um corpo morto na eloquência acusatória de uma moldura.
Fragmentos de indícios onde apenas se pode cheirar o autor e a vítima, eventualmente, a ironia de um motivo fútil e deixar para sempre um crime preterintencional sem castigo debruado a ouro velho de areal.
Tudo aquilo poderá ser tão-somente imaginação prodigiosa, talvez fundamentada na circunstância de um testemunho frágil, lixo, ruídos, resquícios e visões que sobram dos vapores de uma noite de excesso álcool neste Verão interminável.

Lisboa, 29 de Setembro de 2013

Carlos Vieira

sábado, 28 de setembro de 2013

Às voltas

land's end labyrinth


 

 

por dentro

do tempo

inacessível

 

no vórtice

do impossível

mistério

 

no vértice

de silêncio

da tua boca

 

aí se acende

se esconde

um desejo

 

a sofreguidão

insaciável

de asas

 

à flor da pele

pressinto

o rumor

 

de fogo

após o labirinto

do beijo.

 

Lisboa, 28 de Setembro de 2013

Carlos Vieira

 

País Enigma


País enigma

 

Sonhar ali

uma flor

devagar

o seu perfume

breve

pairando

sobre a neve

a raiz

incólume

a sonhar

o sabor

solar

de um fruto

que tarda

a demorar

o olhar

que guarda

ilhas

sementes

e o estigma

do meu país

em luto

enigma

urgente

que acorda

a sonhar

em bruto

a realidade

intangível

meu país

de maravilhas.

 

Lisboa, 28 de Setembro de 2013

Carlos Vieira

 


                                                                   Pintura de Salvador Dali

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Comer o pão que o Diabo amassou…



o pão alvo 
no silêncio inoxidável 
antes dos banhos da manhã

o fermento
leveda secreto e inexorável 
num tempo de arame farpado

o forno calado
na boca a cinza imperdoável
das almas incineradas

na toalha sem pão
tremeluz  a estrela imaculada 
se apita o comboio do subúrbio

oiço o cristal
na pedra que atravessa a janela
por ali a noite entra em sua casa

vive no sótão
todo o tempo de infância
que é todo o tempo da sua vida

parte a mãe
apenas por causa da burocracia
o pai foi atrás da mãe e ela não pode ficar sozinha.

Lisboa, 24 de Setembro de 2013
Carlos Vieira


domingo, 22 de setembro de 2013

Analepse para pequenas coisas






A partir de agora só vou falar de coisas mínimas

insetos quase ausentes com seus gestos tímidos.


O movimento invisível de um olhar para a ternura

de um pássaro desdobrando a sua asa em contraluz.


O fulgor de um rosto no apressado rumor do lago

na mais desconhecida angústia das palavras caladas.


E daquelas que em surdina dissemos fora de tempo

até há doce cumplicidade das vozes na porta entreaberta.


A mão pálida é um pássaro pousado sobre o cromado

enquanto a chave roda e desfaz o doméstico equívoco.


Depois sobre as pontes ocorre-me uma ilusão de viagem

uma súbita vertigem de que ali venceremos o tempo.


Vou pelo jardim público e escondo-me na fresca penumbra

circulo cego de cores guiado pelo solfejo das folhas e aromas.


Descortino entre caos o golpe de mestre do carteirista

e a sua dramática desolação perante o vazio do porta moedas.


Emociona-me a mulher com seu pé descalço e sapato na mão

de tacão alto sob a armadilha da calçada portuguesa tão frágil.


Não imaginam como me dói o Corneto derramado da criança

a profunda tristeza do seu olhar deixa-me o coração gelado.


Vou pelas ruas desertas e esmolas no rés de chão do fim das vidas

sorrio aos olhos enrugados de esperas por amores e gatos e gaiolas.


Enfim fico em êxtase no encontro com a imagem de um grão de areia

ali anónimo e indiferente à convulsão que provoca na engrenagem.


Os turistas da grande solidão disparam a tudo quanto mexe ou fica quieto

na grande guerra de roubar e levar para casa toda a beleza do mundo.


Lisboa, 22 de Setembro de 2013

Carlos Vieira

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Praia do Norte



Voltei de novo
a essa visão vestibular
cor de pêssego
em que te desfrutei
articulando
a penugem e o perfume
do teu corpo
onde se acendia uma luz difusa
um sequioso
itinerário da saliva
no papiro da tua pele
de letra cuneiforme
eu era intérprete do crepúsculo
vencido pelo alabastro
dos teus ombros
depois repousava
no delta movediço dos teus seios
e deixava-me levar
na corrente do teu olhar
acossado e límpido
até voltarmos
a ser de novo rio e céu e mar
viajantes da bruma
doce sabor a orgasmo e sal
corpos seminus
debatendo-se em lençóis de espuma
tudo tão extraordinário
e tudo tão previsível
na ida e volta das cartas
e das ondas.

Lisboa, 19 de Setembro de 2013
Carlos Vieira



                                        “Lendo uma carta na praia” de Dominique Amendola

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Eixo Norte-Sul



Oiço o tráfego de regresso a casa
no Eixo Norte-Sul a horas mortas
não há nada de novo na frente ocidental.

Oiço gente que regressa a casa 
mais morta do que viva no Eixo Morte-Sul
não é nada de novo na frente ocidental.

Oiço a longínqua e antiga frente ocidental
no tráfego do Eixo Norte-Sul
gente morta de cansaço de regresso a casa.

Oiço este tráfego de gente quase morta
que vai para a frente ocidental
para o hospital via Eixo Morte-Sul

Oiço o Eixo Norte-Sul dentro de mim
o diálogo de gente quase morta
lâmina do ocidente que leva tudo à frente.

Oiço o tráfego do Eixo Morte-Sul
A sua eternidade dia e noite na minha casa
e o número de baixas na frente ocidental.

A minha casa é a frente ocidental
é desta gente que a ela regressa
eixo de um poema e diálogo Norte-Sul.

Lisboa, 16 de Setembro de 2013
Carlos Vieira