sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Melodia interrompida



Ando de novo 
pelas margens do Lena.
ou pelas margens do Liz
Minha memória 
é esta comoção
afluente de dois rios.
Os teus olhos rasos
pedem uma ponte 
ou um cais.
Os teus pés descalços
e o teu riso límpidos
chapinham no açude
como se fossem peixes 
que de tanto cintilar
ameaçam voo.
Sobre o espelho desta água
que dou caminho
o meu amor 
pode estar
a uma amora de distância.
Os motores de rega
silenciam os rouxinóis.
Enquanto me tentas
de longe
vou escolhendo o calibre
das maçãs.

Lisboa, 16 de Agisto de 2013
Carlos Vieira



                                                       Day on the river. Bill Brandt, 1941

Última oportunidade




Na eternidade da areia dourada a praia
A espuma efémera das ondas
No contratempo dos teus pés
Onde tropeçam os peixes
Nas conchas e nos búzios
Escondem-se segredos
Acende-se a luz
Uma semana
No paraíso
T1/MP 
750€

Lisboa, 15 de Agosto de 2013
Carlos Vieira



quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Dilema




Sigo-te
pelo mundo
como um cão
que não conhece o dono.
Digo-te
no texto interrupto
em escrita torrencial.
Ali te vivo a ausência
o sono e o naufrágio
do mundo.
Só porque te amo
ser fecundo.
Memória que ferve
de palavras obscenas.
Contra o teu corpo
Todo o abandono
trágico dos poemas.

Lisboa, 15 de Agosto de 2013
Carlos Vieira


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Palavras em ponto de cruz



Na contraluz
nós
os deuses
seminus da timidez
manuseando
em nós
de ponto de cruz
uma escultura
a linha branca à volta
da tua dura tez
“era uma vez
o que me seduz
na tua voz…”
essa ternura
balbuciada
a sós
na contraluz.

Lisboa, 14 de Agosto de 2013


Carlos Vieira

                                                  Pablo Picasso “Na sombra de uma mulher”

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Protesto o direito ao teu silêncio

O teu silêncio cúmplice
tem a profundidade das viagens dos grandes cetáceos
e dos sonhos dos grandes homens
Que nem sonham dos grandes perigos
que os cercam
O grande silêncio de te poder escutar 
em todos os objetos da nossa pequena casa
que após o teu toque suave 
respiram o amor das tuas mãos
todo o sono dos justos 
e a insónia dos que sofrem em silêncio
desagua no grande rio das palavras caladas e por dizer
afluente do teu silêncio aflito
De mãe sem respostas aos estímulos
incrédula perante os sintomas
que sofre sozinha todas as ausências
e o silêncio ancestral das memórias
onde reencontro 
envolto de grande mistério do teu corpo nu
debaixo da árvore
onde adormecendo regresso 
e te reinvento numa breve alegria
iluminada de um frémito de folhas
e de pássaros
Reconstruo-te a partir do vazio dos amigos
que já partiram
e dos outros que nunca mais reencontrei
Dessa emoção silente e imaterial 
farei o molde e os nós
de onde renascem e se desatam os abraços
e se vai quebrar o silêncio deste mesmo mundo
Neste mar bravo da vida
e grave silêncio dos antepassados
que deixámos de ouvir
daquele dos injustamente acusados
e dos que vão esboçando gestos 
perante a surpreendente dificuldade das palavras
O teu silêncio meu amor é uma flor desabrochando 
para os que vão partir 
e também para os que estão a morrer
e cujas palavras
não vêem o sol de um último sorriso
Estar aqui 
olhar para ti e por ti e está tudo dito
Minha imensa graça de um poema sem palavras
e em que todas as palavras encontram o seu lugar
o seu ritmo
Tu és meu desejado ermitério 
e meu silêncio
e meu celebrado protesto
daqueles que não tem 
nunca terão voz.

Tojal, 6 de Agosto de 2013
Carlos Vieira

sábado, 3 de agosto de 2013

Linhas cruzadas


I
Esta noite vi passar 
por três vezes o TGV
nos arredores da terra de ninguém
num ápice
percorria a distância
que separava o sonho
deste apeadeiro.

II
Como seria o mundo se Napoleão
não fosse devorado pelo ciúme
e Josefina estivesse
por ali
disponível
durante a campanha
no wagon lit
imperial.

III
E se Van Gogh
pudesse ir amiúde
de Arles a Paris
e esse comboio
fosse também a sua vertigem de tempo
a lâmina da navalha
a volúpia
que o isola da paisagem
e a desfaz em pedaços
a cada segundo.

IV
O que iria escrever
Júlio Verne
agastado pelo matraquear
do mundo sobre carris
por esta aventura
com passagem de nível e horários
de uma locomotiva arquejante
que se afasta do cais.

V
Nesta noite de insónia
arquivei de vez
este projeto de sonho
em bitola europeia
substituindo-o pela linha do Tua
submersa no futuro
que se cruzava
com tantas outras linhas
que percorri
por vezes
apenas na ardósia e giz da infância
e no carvão da Serra dos Candeeiros
linhas de vida abandonadas
aromas de vindima
e óleo queimado.

Lisboa, 3 de Agosto de 2013
Carlos Vieira


domingo, 28 de julho de 2013

Abandonar-me...

Abandonar-me
à circunstância das tâmaras
dos seus seios
tornear a sua pélvis
num ultimato do magma
incandescente
percorrer o roteiro
dos seus odores
contemplar-te
sem me compadecer
depois erguer-nos
soberbo
sobre a madrugada
sem desfalecer
sem sombra de pecado
desferir o golpe fatal
que derrama sobre nós
inapelável
uma estrela interior
que nos guia
e que nos cega.

Lisboa, 28 de Julho de 2013
Carlos Vieira

Imagem de autor desconhecido