quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012
Reflexão num abrigo de montanha
Ludibriar o guardião da penumbra
fazer a bola passar-lhe entre as pernas
depois dessa genuína e infantil artimanha
urdir um louco pretexto de amor livre
e ser ele o luzeiro que oculto murmura
nosso engenho do vento a iludir a censura
e nesse mirabolante ardil de luz e de sol
nunca deixará de cintilar dentro de nós
a voz cristalina e inquieta da montanha
que sobre o imenso manto branco de neve
sobressaltos de abismos e de beijos adormece.
Lisboa, 27 de Dezembro de 2011
Carlos Vieira
“ravens” Arnt Flamto
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012
DO FUNDO DE UM POÇO
Havia muitos poços na infância, ela própria, ainda hoje poço
primordial da minha sede, no quintal que se perdeu da casa dos meus pais.
Lembro-me de olhar
para dentro dele e sair em seco do outro lado do mundo, dos caminhos em
círculos concêntricos dos peixes e da curiosidade das rãs, onde o meu rosto, na
moldura dum céu sem nuvens, lhe fazia adivinhar ainda assim, uma chuva de
pedras.
Ainda está fresca na
minha memória, a água que retirava do balde, em alegrias de dar à corda, a
inebriante música, feita de arabescos, de sonhos de odaliscas e dos movimentos
mínimos e insondáveis dos mecanismos da nora e do percurso final da água, num
mármore branco que já fazia parte da minha sede.
A minha memória do
verão é feita do gesticular das picotas nos campos, a que se sucedeu o troar
dos motores de rega, junto de circunferências de tijolos vermelhos, semeadas
pelos terrenos com cerca de um metro de altura, que nos separavam do abismo.
Até que um dia, o
poço deixou de ser esse mistério profundo, onde os animais da mitologia se
poderiam encontrar e se guardavam os tesouros das guerras e dos grandes
injustiçados da História.
O meu pai disse-me,
“- Para a semana, vamos limpar o poço!”, tal determinação e tarefa no meu metro
e pouco de tamanho, perante os muitos metros de profundidade do mesmo, assumia
dimensão que nem o Hércules mais competente ou mais dotado poderia realizar,
sem correr riscos desmedidos.
Todos os dias sonhava
com aquele dia, em que desceria à noite do poço e poderia olhar de frente a
morte, as rãs e os peixes e os pardais que tinham a ousadia ou a imprudência,
de fazer ninhos nas suas paredes.
Até que chegou o dia
e através do sarilho, depois de ser despejada a água do poço, desci nos meus
doze anos até aos vinte metros, não sei se estarei a meter água, nem sei se
sabem o que é um sarilho, uma geringonça de outro século que nos mantinha a
esperança de voltarmos ao século vinte, e que ao mesmo tempo que retirava a
terra que se tinham acumulado ou outros detritos no fundo poço, nos trazia
também o almoço.
Aquele poço ajudou-me a ver que nas entranhas da terra, o
céu era apenas uma luz ao fundo do túnel, a perceber a pobreza e fragilidade
dos sonhos confinados e o valor da corrida, em linha reta, pelas estradas de
terra batida dos campos, nem que fosse apenas contra o vento ou contra a chuva,
ensopado até aos ossos, naqueles outros lençóis de água verticais.
Carlos Vieira
domingo, 26 de fevereiro de 2012
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