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segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Os bois...

Os bois
prosseguiam
vagarosamente os dois
sem saber
e sem olhar para trás
rasgavam a terra
e naquela nesga
exponham os vermes
seduziam os pássaros
animavam as sementes
hoje não são mais
que memórias ancestrais
na sua mansa bestialidade
dinossauros do futuro
Lisboa, 25 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Noites de breu à procura III


No princípio
eram os pássaros
de fogo
emboscados
nos misteriosos
interstícios
a latejar
na tua pele
numa ânsia
de vulcão
num secreto
prazer
a fervilhar
armando-me
ciladas
nessa noite
as explosões
e as réplicas
do teu ser inteiro
inventaram
em mim
múltiplas
madrugadas
e tuas unhas
afiadas
a sulcarem
o meu dorso
riscando
caligráficas
as assinaturas
das constelações
em sangue e em luz
foi então
que nos perfumados
promontórios
do teu corpo
saboreei
o sal e o mel
do êxtase
enquanto a lança
incandescente
ía em busca
do coração
e acendia
divina a chama
e depois
do amplexo final
regressaste
àquela solidão
olímpica
e sem sexo
de ternura
asséptica.
Lisboa, 22 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Nu Azul III - Henri Matisse

Noites de breu à procura II


Jogamos toda a noite à cabra-cega
na dupla escuridão que habitamos
na câmara escura da nossa dupla solidão
desfiando a teia e a luz ténue e bruxuleante
que nos tolhe e incendeia e vai decompondo
com o ácido da nossa paixão desesperada
os negativos da nossa eterna procura.
Lisboa, 21 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Madrigal de um tímido


I
emboscado no canavial
estremece ao ver 
os pés descalços
que agitam
as águas do açude
irão despertar
nas profundezas
da alma
imprevisíveis monstros
II
no salgueiro
há um rouxinol aceso
uma boga beija
os lábios dela
no espelho de água
refletidos
apenas ele desconhece
os segredos
que se escondem
na sua boca
III
uma rã descansa
sobre o veludo verde
do nenúfar
ela entre os dentes
trinca uma flor silvestre
só quem pode
aproximar-se
pode distinguir
o alcance
dos seus perfumes
e sossegar
IV
entretanto a rã
pressentindo
o agitado coração
no canavial
coaxando
atira-se à água
como quem se despede
da vida
e a rapariga
por nada começa
a trautear
uma canção
de encantar
Lisboa, 19 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Que ilação podemos retirar...

que ilação podemos retirar
de um cão rafeiro e vadio
que passa por nós a correr?
Lisboa, 16 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Garatujar

um dia
hei-de voltar
aos rabiscos
e arabescos
a essa frugalidade
de garatujar
o mais incipiente
conhecimento
do mundo
Lisboa, 16 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Poema a propósito do equilibrio inútil


Busco o incessante
equilíbrio
a emoção
sobre a prancha.
Navego a onda
que se desenrola
abraço o seu pescoço
de corola e de mulher
ausente.
Aspiro a fragrância
sou engolido
pela paz profunda
e por marítima revolta.
Percorro os verdes
e os azuis vários
a líquida transparência
e o caos nos sonhos
de sereia.
Triunfo sobre a espuma
que beija minha pele
cravejada de escamas
do ouro da praia.
Meu corpo cuspido
pelo oceano
enfeitado de algas
adquiriu o esplendor
do sal devastado
de solidão.
Lisboa, 16 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Imagem de autor desconhecido

domingo, 21 de agosto de 2016

Miles Davis & John Coltrane - Kind of blue


Árvore do fruto permitido


Uma a uma te desfolho
árvore do esquecimento
sem saber do teu nome
sei de ti no sangue incendiado
onde te afasto te escolho
abraço-te no pensamento
que me alegra e consome
és a sombra e a fome
que me consola e me cerca
mulher que me desperta
e a seguir me apunhala.
Lisboa, 15 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Que mistério quis desembrulhar

que mistério quis desembrulhar
quando comprei o teu olhar tão doce
com três rebuçados
Lisboa, 15 de Maio de 2016...
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Pedras com sonhos de curta duração


Chegou ao lago
escolheu uma pequena pedra
fez-lhe um afago
memória esguia e abaulada
que colocou
entre o indicador e o polegar
fez o gesto antigo
de infância
deu-lhe um seco impulso
de chicote
ouviu-se o eco no ar
do pequeno seixo
a palpitar
sobrevoando
ou a chapinhar
mais à frente
ali fez meia dúzia
de círculos
no espelho de água
por momentos levemente
encrespado
o pássaro pedra
após o voo rasante
por fim exausto
mergulhou profundamente
voltando
à sua vivência mineral
agora em águas profundas
na sua mão
ficou uma leve
sensação de vazio
um pequeno resquício
de lama
e sopro de vida
que partiu.
Lisboa, 15 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Tempo quase morto


Está um tempo de trovoada
de interlúdio
de antecâmara
de véspera de água
de orquestra e respirações
tempo em suspenso no início
da submarina sinfonia
de regresso a um silêncio
de insectos a adivinharem emboscadas
tempo de clarividência de moribundo
de nós na garganta de um amor que se desfaz
que se extinguiu na incandescência
da palavra inventada para aquele momento
tempo do estertor nas entranhas de um mundo
que certamente se vai desmoronando
segundo a segundo
enganamo-nos nesta tépida solidão
de cada um sermos
ao fim e ao cabo únicos
e ao mesmo tempo todos
deslocados
tempo de sorrisos
e melancolias e penumbras
de alguns sobreavisos e de relâmpagos
cintilando nas almas e corações
construímos um tempo do conforto
servindo a Deus e ao Diabo.
Lisboa, 15 de Maio de 2016
Carlos Vieira

As flores estão mais belas no jardim...

as flores estão mais belas no jardim
será porque dantes passava por elas
e agora elas passam por mim?
Lisboa, 13 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Uma andorinha...

uma andorinha na manhã
dá cambalhotas de asas molhadas
onde irá cair?
Loures, 12 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Delação


Enquanto dou o despacho
vespertino
absolutamente neutro
“Visto.
Prossiga.”
desce pela chaminé
da lareira
no arrulhar da rola
um incandescente
segredo
a caneta sucumbe
sob a secretária
do aparo
aspiro o aroma
familiar
de tinta permanente
de um azul inquisidor
no murmúrio
menos abundante
da chuva de primavera
sou um espectador cego
perante o silencioso
desabrochar
glorioso da flor
e enlouquece-me
na seiva
o seu secreto rumor.
Loures, 13 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Napalm


Hoje pensei em napalm
naqueles campos de infância
de búfalos e de gazelas
que há muitos anos se cobriram
de fogo e de cinza
e penso naqueles que hoje
ainda padecem de insónia
e das queimaduras de 1º grau
e todos os que ficaram de vigília
a zelar por um inútil rescaldo
reacenderam-se do nada
no pensamento.
Lisboa, 11 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Diário do discreto cidadão


Fazia tudo
com muita reserva
não gostava de dar nas vistas
e tal era muitas vezes confundido com timidez
no entanto a sua vida sempre se alicerçou
na ousadia e na coragem silenciosa
no gesto subtil de misericórdia e não na astúcia
não no ardil sibilino mas na delicada atenção
nessa discreta generosidade
sopesava que fosse mínima a presença
que a sua sombra não o denunciasse
inventava a ausência em cada passo
era meticuloso e não descuidado
sem pisar ninguém deixava que a sua palavra
se espraiasse luminosa como o ar
que se respira com ela criava abrigos
para os que fugiam das tempestades
acendendo um farol de rara lucidez
sem que se pusesse em bicos de pés
do seu olhar deprendia-se uma alegria contagiante
e uma tábua de salvação
adivinhava-se uma serenidade nunca resignada
com uma pincelada de tristeza solidária
saía com a mesma discrição
de quem entrara e sem deixar rasto
que se notasse ou vazio inquietante
apenas um perfume de inequívoco bom senso
ninguém se apercebera que se quebrara
a completetude do círculo ou que a corrente de ar
pudesse perturbar aquela consertação
das solidões e vacuidade ali reunidas.
Lisboa, 8 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Homem em Azul, Pablo Picasso

Aguarda no carro...

Aguarda no carro
alguém que tarda
a chuva cai inclemente
é como se tivesse
dentro de um piano
onde a música
no exterior
é de água e metal
de vidro e isolamento
e uma flor ao volante
Lisboa, 7 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Desculpe mas preciso de respirar


desculpe
mas esta é uma zona de não fumadores
diz o barman
com o olho azul imperturbável
a boiar no gin
enquanto converso com um amigo meu
que há muito não vejo
e que decorava alegremente
o ambiente com argolas de fumo
e recordava-me vagos sofás
de veludo vermelho
desculpe
mas nesta zona não pode falar
pode-se ciciar
é o mais longe que se pode ir
e os vestidos de noite das senhoras
podem varrer o chão
num roçagar mais ou menos
interrompido
alguém pode deitar o lixo
e a vã humanidade
para debaixo da carpete
para longe de si
desculpe
pode escrevinhar um verso
com rima com ritmo
com o peso que lhe permita o voo
descontando a intensidade da corrente de ar
em que se perceba que queimou as pestanas
para o levantar
a cinquenta pés de altura
para chegar aqui
não se pode sacar de um poema
de versos brancos
e pé quebrado
com um toque modernaço
e desatar a incomodar
os nossos sofisticados clientes
desculpe
mas há espaços próprios para poesia
e momentos
por exemplo nesta zona é proibida
não rima
com um belo Cohiba
não se podemos dar a esses luxos
de demonstrações excessivas
de sensibilidade
a secretas e subversivas alegrias
não damos tréguas ao absurdo e inexplicável
e temos uma política de contingência
e condicionamento
de evitar o contágio dos instintos
desculpe
mas aqui no nosso clube
abominamos
o que é controverso
e não contemporizamos
com discussões serôdias ou de detalhes
estamos imbuidos
de uma curiosidade tranquila
funcionamos em equipa
com incentivos
estamos todos no mesmo navio
a remar todos para o mesmo lado
e quem não é por nós
é contra nós
desculpe
mas não pode entrar de ténis
são normas da casa
o saber estar e a contenção
o beber de uma forma moderada
a apresentação
conta muito para nós
saber comportar-se
não toleramos
o livre arbítrio
desculpe
optar por esse abordagem
tão direta e linear
sabemos
que é um pouco perverso
o entendimento
mas a eficácia
o não perder tempo
a máxima racionalização de recursos
impõe-nos
um certo distanciamento
perante algumas minudências
de personalidade
e de ocupação de território
desculpe
mas aqui não é permitido o beijo
nem outras manifestações de afeto
não é próprio
este é um local de respeito
e de simpatia velada
e subtilezas
temos que lhe pedir
que se contenha
ou que abandone
o estabelecimento
desculpe
mas não pode tirar fotografia
nem flashs
preservamos o ambiente muito peculiar
o controlo científico
para que a exposição
apresente as melhores condições à arte
de que nos orgulhamos mostrar
preservamos
que os visitantes não fiquem afetados
não se intimidem
nem fiquem encadeados
a razão está acima de tudo
desculpe
mas o contexto era muito adverso
pelo que aí pode encontrar
a explicação cabal
não podemos fazer mais nada
não nos estamos a furtar
ás nossas responsabilidades
gostaríamos muito de poder satisfazê-lo
esse não é esse o nosso “core"
a nossa área de negócio
Lisboa, 3 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Inexplicável morte violenta


Ainda se sentou
na escada
que dava acesso
à varanda
do primeiro andar
por ali ficou
a mão esquerda
perdida do corrimão
e da tinta lascada
por tanta intempérie
que queimara
a madeira de pinho
nas pétalas de sangue
no coração a adivinhar
os borbotões no peito
esteve pouco tempo
sozinho
antes que a morte
o acompanhasse
pera além
do horror do vizinho
e contudo
uma eternidade
esculpida no rosto
por instantes
ainda regressou
ao espanto e ao tiro
á queima roupa
a tinir-lhe nos ouvidos
e a pólvora nas narinas
e um silêncio húmido
e o tal caleidoscópio
a toda volta
se o investigador
agora se debatia
com descortinar
do móbil do crime
então que dizer
dele próprio
sua vítima
e os mortos
não falam.
Lisboa, 2 de Maio de 2016
Carlos Vieira