segunda-feira, 12 de junho de 2017

Logradouro

a poesia 
é tantas vezes
um logradouro
já não é casa
ainda não é rua
Lisboa, 10 de junho de 2017
Carlos Vieira

Avivar


Tocar
de ternura efémera
uma vida 
irrelevante
o seu espanto
anónimo
sublinhar
as reentrâncias
o estertor subliminar
avivar-lhe
a ruga e disfarçar-lhe
a nódoa negra
no olhar límpido
acrescentar
a sombra subtil
quase imperceptível
meticulosamente
abrir um caminho
para o mar
e para a palavra
inaudível
e deixar
que o seu vagar
vá destruir
o baixo relevo
que na areia
tornou possível
esculpir
a preto e branco
o seu retrato
e que o mar e a palavra
possam temperar
a tenaz do calor
e que deixe o sal
sulcar a cicatriz
e lhe devolva a cor
e que a dor
que cura
seja a mesma
que lhe faz sobressair
a beleza
e que contra
o esquecimento
viva o rosto sossegado
da tristeza
e ainda que pautado
pelo cabelo
do desalinho
resista
esse antigo acto de amor
amortalhado
de cambraia e pergaminho.
Lisboa, 11 de Junho de 2016
Carlos Vieira

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Depois de uma noite em branco


É inacreditável
como só agora me dou conta
como gosto de branco 
de preencher
esse lugar do esquecimento
onde percebi
o efémero das pegadas
e a penumbra de um voo
a agitar o líquen
na planície polar
e depois do virar
da página do degelo
o recomeçar da vida
no espanto da tundra
carater a carater
num texto singelo
erva a erva
percorrer a superfície
desértica e lunar
entre a impaciência
do animal
na palavra que encanta
e aquela que dispersa
o homem
momentos da angústia
de tanto sopesar
de cores carregadas
de ausência
e de repente uma branca
um desespero
que nos tolda
que te abraça
sucede-lhe a coragem
o instinto de sobrevivência
a caça
pelos secretos interstícios
da alegria
e num lampejo
que fez do lençol branco
camisa de forças
e com ele vincado
de insónias
amarrei a noite
fugi da reclusão
do seu beijo.
Lisboa, 29 de Agosto de 2016
Carlos Vieira

A subtil relevância dos objetos


Um par de chinelos brancos
repousam
sobre a carpete macia
e a luz da manhã
faltam-lhe os teus pés
o teu perfume
asas do meu dia.
Lisboa, 30 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


Apontamento de asa ferida



A pomba branca  
uma ferida no céu azul
que se despenha 
e no seu regresso
se desenha
num excesso de sul
e exaurida de sal.

Lisboa, 30 de Agosto de 2016


Carlos Vieira

domingo, 28 de agosto de 2016

De partida (para Maastricht)


Segue o teu rumo
prova o sumo
poderás beber do fel
partilha
esse teu belo sorriso
minha filha
tem o bom juízo
e uma certa loucura
partiste
nessa aventura
de quem não desiste
do sonho tão mais alto
que a tua altura
que é muita
visto que é sonho
ama como quem luta
enfrenta o infinito
e o medonho
desfruta
a chama acesa
no íntimo
de cada partícula
a beleza
de cada migalha
à mesa do universo
se o teu coração sofre
alguém te escuta
por ti tudo pode fazer
e nada ser
mais forte
que um verso
vislumbra
longe das luzes
o gesto mais nobre
sacia-te da melodia
que mais pura
vai brotar
no cume da montanha
nunca imaginada
e só a sua voz
te pode levar
além de ti
aqui comigo
ficou esse halo
do teu sorriso
que a madrugada
inveja
a amêndoa delicada
do teu olhar
uma longínqua
contingência
da lágrima
que agora
posso secar
apenas com a brisa
da minha mão invisível
ainda contigo
para te guardar
levaste
esse tão indiscreto
gesto inábil
de te amar
em silêncio
ficou e partiu
esse grito
em uníssono
contra a vil cobiça
e a injustiça
do mundo
minha querida
podes esquecer tudo
mas nunca
esqueças isto
este tão pobre
e tão valioso
legado.
Voa voa voa
minha filha
que o teu pai
está em Lisboa.
Aeroporto Humberto Delgado, Lisboa, 27 de Agosto de 2016
Carlos Vieira


Constança

Marguerite Duras et l'amour du vide