terça-feira, 31 de dezembro de 2013

PETICIÓN


Señor devuelve a las cosas su esplendor perdido
reviste al mar con su magnificencia de siempre
y vuelve a cubrir los bosques con sus variados colores
retira la ceniza de los ojos
limpia el amargor de las lenguas
haz caer agua pura que se mezcle con las lágrimas
permite que nuestros muertos duerman en el verdor
que nuestro obstinado pesar no logre detener al tiempo
y que el corazón de los vivos florezca con el amor


só o sangue cheira a sangue


Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor –
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes por que já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.

Anna Akhmatova

Shake the dust


SHAKE THE DUST
This is for the fat girls.
This is for the little brothers.
This is for the schoolyard wimps and for the childhood bullies that tormented them. For the former prom queen and for the milk crate ballplayers. For the nighttime cereal eaters and for the retired elderly Wal-Mart store front door greeters. 
Shake the dust.

This is for the benches and the people sitting upon them. For the bus drivers driving a million broken hymns. For the men who have to hold down three jobs simply to hold up their children for the night schoolers and for the midnight bike riders trying to fly. 
Shake the dust.

For the 2-year-olds who cannot be understood because they speak half-English and half-God. Shake the dust.
For the boys with the beautiful sisters. 
Shake the dust.
For the girls with the brothers who are going crazy, for those gym class wallflowers, for the 12-year-olds afraid of taking public showers. For the kid who’s always late to class because he forgets the combination to his locker, for the girl who loves somebody else. 
Shake the dust.

This is for the hard men who want love but know that it won’t come. For the ones who are forgotten. The ones the amendments do not stand up for. For the ones who are told to speak only when you are spoken to and then are never spoken to. Speak every time you stand, so you do not forget yourself. Do not let a moment go by that doesn’t remind you that your heart beats thousands of times every day and that there are enough gallons of blood to make every one of us oceans. Do not settle for letting these waves settle and for the dust to collect in your veins.

This is for the celibate pedophile who keeps on struggling. For the poetry teachers and for the people who go on vacations alone. For the sweat that drips off of Mick Jagger’s singing lips. For the shaking skirt on Tina Turner’s shaking hips. For the heavens and for the hells through which Tina has lived.

This is for the tired and for the dreamers.
For the families that will never be like the Cleavers, with perfectly made dinners and sons like Wally and the Beaver. This is for the bigots, for the sexists, for the killers, for the big house pen-sentenced cats becoming redeemers, and for the springtime that always seems to know to show up after every one of our winters.

This is for you.

Make sure that by the time the fisherman returns you are gone. Because just like the days, I burn at both ends and every time I write, every time I open my eyes, I am cutting out parts of myself just to give them to you. So shake the dust. And take me with you when you do. For none of this has ever been for me. All that pushes and pulls, it pushes for you.

So grab this world by its clothespins, and shake it out again and again. And hop on top
and take it for a spin. And when you hop off, shake it again. For this is yours. 
Make these words worth it.

Make this not just another poem that I write. Not just another poem like just another night, that sits heavy above us all. Walk into it, breath it in. Let it crawl though the halls of your arms, like the millions of years of millions of poets coursing like blood, pumping and pushing, making you live, shaking the dust. So when the world knocks at your door, clutch the knob tightly and open on up. And run forward. Run forward as fast and as far as you must. Run into its widespread greeting arms with your hands outstretched before you, fingertips trembling though they may be.

Questão de vida ou de morte
























doze vezes


Olhos puros de nuvens pousam sobre ele como a ave na sua sombra. Está tão perfeitamente só que se exceptua do total. Fita o dorso dos livros que se arqueiam. Escuta a música que brilha nos sapatos. Por vezes, ao meio-dia, sorri doze vezes. Sorri também à noite quando tem medo. Põe em todas as suas sensações as algemas do sorriso.


André Breton, The Immaculate Conception

À tarde passam por mim



Gosto de passear 
ao cair da tarde pelo jardim
por mim
passam 
em passo de corrida
os que mantêm a forma física
os que vão tardar a cair
e por mim 
passa também
a delicada filigrana 
da folha caída.

Lisboa, 31 de Dezembro

João Carreira

Porque escrevem as pessoas?

Por que as pessoas escrevem? Já me fiz tantas vezes esta pergunta que hoje posso respondê-la com a maior facilidade. Elas escrevem para criar um mundo no qual possam viver. Nunca consegui viver nos mundos que me foram oferecidos: o dos meus pais, o mundo da guerra, o da política. Tive de criar o meu, como se cria um determinado clima, um país, uma atmosfera onde eu pudesse respirar, dominar e me recriar a cada vez que a vida me destruísse. Esta é a razão de toda obra de arte.
Só o artista sabe que o mundo é uma criação subjetiva, que é preciso escolher, selecionar. A obra é a concretização, a encarnação do seu mundo interior. Ele espera impor sua visão pessoal, partilhá-la com os outros. Se não atinge esta última finalidade, o verdadeiro artista persiste assim mesmo. Os poucos momentos de comunhão com o mundo valem esse sofrimento, pois finalmente esse mundo foi criado para os outros como um legado, como um dom destinado a eles.
Também escrevemos para aprofundar o nosso conhecimento de vida. Para atrair, encantar e consolar. Escrevemos para acalentar nossos amantes. Para degustar em dobro a vida: no momento preciso e retrospectivamente, na sua lembrança. Escrevemos, como Proust, para tornar as coisas eternas e para nos convencermos de que elas o são. Para podermos transcender nossa vida e alcançarmos o que existe além dela. Escrevemos para aprender a falar com os outros, para testemunhar nossa viagem ao labirinto. Para abrir, expandir nosso mundo quando nos sentimos sufocados, oprimidos ou abandonados. Escrevemos como os pássaros cantam, como os primitivos dançam seus rituais. Se você não respira quando escreve, não grita, não canta, então não escreva porque sua literatura será inútil. Quando não escrevo, meu universo se reduz; sinto-me numa prisão. Perco minha chama, minhas cores. Escrever deve ser uma necessidade, como o mar precisa das tempestades – é a isto que eu chamo de respirar.


Anais Nïn

Carta de un náufrago





Con el consentimiento de la nieve
caminaré despacio.

Alguien habrá que espere junto al fuego
y yo, que estaré ciega por el frío,
haré paradas breves,
sacudiré el paraguas y empezaré de nuevo.

El único secreto es no sentirse
inmensamente lleno de verdades.
No aceptar nunca las invitaciones
que la neblina
sugiere al anidar con sus disfraces
de paisaje feliz, de grandes sueños.

Alguien habrá que diga, se ha perdido,
alguien saldrá a buscarme,
y llevará el calor de una botella
donde podré mandarte este mensaje.

Ana Merino, De "Los días gemelos" 1997

the safety of objects


I'm trying to find some piece of myself that is truly me, a part that I would be willing to wear like a jewel around my neck. My foot. I love my foot. If I had to send a part of myself to represent myself in some other country, or in some other way, I would amputate my foot and send it wrapped in white tissue on a silk-embroidered cushion. I would send my foot because it is me, more me than I'm willing to let on. There are other parts that are also good - hands, eyes, mouth - but after a few months I might look at them and not see the truth. After a few years I might look at them and think of someone else. But my foot is mine, all mine, the real thing. There is no mistaking it. I look at it; I take off my sock and it screams my name.

Amy M. Homes

o táxi


Quando me afasto de ti
o mundo bate sem força
como um tambor que enfraquece.
Eu chamo-te entre as estrelas lá no alto
e grito pelas cristas do vento.
As ruas, rapidamente,
uma a seguir à outra,
levam-me para longe de ti,
e os candeeiros da cidade furam-me os olhos
para que não mais contemple a tua face.
Porque deverei eu abandonar-te,
para acabar magoada nas afiadas esquinas da noite?


Amy Lowell

Gosto de ostras...

Gosto de ostras
do seu cheiro a maresia
do teu aroma remanescente
nas pérolas.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Ao fim

Al Cabo

Al cabo, son muy pocas las palabras
que de verdad nos duelen, y muy pocas
las que consiguen alegrar el alma.
Y son también muy pocas las personas
que mueven nuestro corazón, y menos
aún las que lo mueven mucho tiempo.
Al cabo, son poquísimas las cosas
que de verdad importan en la vida:
poder querer a alguien, que nos quieran
y no morir después que nuestros hijos.

Ao Fim

Ao fim são muito poucas as palavras
Que nos doem a sério e muito poucas
As que conseguem alegrar a alma.
São também muito poucas as pessoas
Que tocam nosso coração e menos
Ainda as que o tocam muito tempo.
E ao fim são pouquíssimas as coisas
Que em nossa vida a sério nos importam:
Poder amar alguém, sermos amados
E não morrer depois dos nossos filhos.

          Amalia Bautista

tradução: Joaquim Manuel Magalhães*

Deitas-te aos meus pés...

Deitas-te a meus pés
e as páginas passam a ser almofadas
recheadas de sonhos

e frutos
e nuvens
e acreditares

e palavras como as que nunca me disseste


Alexander Demidov

Trago as mãos sonâmbulas...


trago as mãos sonâmbulas de te esperar ao relento da noite.
há muito que deixei de trazer mapas nos bolsos.
respiro apenas a lonjura.


Ana C.

Ave haiku LXXIV




O voo do sabre é o relâmpago que fulmina 
a passagem do tempo da melancolia
uma ave frágil de cerâmica é um pára-raios.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

tenho um grito


     um canto
     uma flor
uma noite destas
de uma vez
vou oferecer-te tudo
     meu amor.


Mário Contumélias, vida, divisão única

A JAULA

Citação



«Se quiser escrever sobre emoções humanas, tenha gatos em casa.»

Aldous Huxley

Quote

• Lying is done with words and also with silence.
Adrienne Rich

Fim


Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.
Mário de Sá Carneiro

Ave haiku LXXIII



Sento-me à beira do tanque
o pardal no outro canto sacia a sede
o gato sacode o rabo no muro estreito.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Hoje não visitei...


Hoje não visitei ainda a passarada
aguardam-me, a alpista, água mudada
não necessáriamente por esta ordem
mais uns minutos e ficam inquietos 
a bater-me com o bico nas costelas
flutuantes e nas paredes do peito.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Esta dor não passa quando adormeço



Esta dor não passa quando adormeço
chora ao pé de mim
irremediável

alguém nos toca no ombro e
damos por nós mais sozinhos

o meu lugar na morte
é junto à janela
logo atrás de ti


Mário Rui de Oliveira

A nêspera

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece


Mário-Henrique Leiria, Contos do gin tonic

ASTRONOMY

 
The Wain upon the northern steep 
 Descends and lifts away. 
Oh I will sit me down and weep 
 For bones in Africa.



 For pay and medals, name and rank, 
 Things that he has not found, 
He hove the Cross to heaven and sank 
 The pole-star underground.



 And now he does not even see 
 Signs of the nadir roll 
At night over the ground where he 
 Is buried with the pole.


A. E. Housman

mostras-me o fim do mundo


Mostras-me o fim do mundo
o Inferno de Dante
onde o Diabo nos arde na sua fogueira
com os demónios todos juntos
mesmo assim quero ir contigo
vou contigo para o fim do mundo
para o fim da Terra
para o Céu ou o Inferno
vou contigo para a fogueira do Inferno
lá quero-me arder contigo
e ardemos os dois
ao mesmo tempo trespassados pela faca do amor.


António Gancho

Debaixo do colchão tenho guardado


Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.


António Franco Alexandre

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O silêncio e a solidão


Um dia rebentaram-lhe os pulmões de tanto respirar tudo até ao fim.
Não conseguiu suportar as cóleras contidas nem a sujidade das ruas nem a metamorfose dos dias.
Um poeta disse-lhe «todas as noites parecem sair do mesmo céu, são pedaços de linho enegrecido».
Respondeu-lhe que metesse as metáforas no cu e desatou a correr, movida pelo álcool.
Depois, dirigiu-se a um jornalista, pedindo-lhe que fizesse uma reportagem sobre o silêncio e a solidão que envolvia os ratos em galerias fantásticas.


António Ferra, Marias Pardas

MÚSICA


Se duvidas que teu corpo
Possa estremecer comigo –
E sentir
O mesmo amplexo carnal,
– desnuda-o inteiramente,
Deixa-o cair nos meus braços,
E não me fales,
Não digas seja o que for,
Porque o silêncio das almas
Dá mais liberdade
às coisas do amor.

Se o que vês no meu olhar
Ainda é pouco
Para te dar a certeza
Deste desejo sentido,
Pede-me a vida,
Leva-me tudo que eu tenha –
Se tanto for necessário
Para ser compreendido.


A poesia protege-te...

a poesia protege-te
dispõe-se em ti como uma árvore a guardar uma paisagem
circunda-te de torres que deixam ver o céu.
não temas pois o cerco
que o horizonte alarga-se por entre as portas
em cada pedra cada tábua começa um poema
se guião ou guardião não sabemos
pronuncia apenas as palavras
na língua o vendaval
e há quem diga que morre desprotegido
há quem diga que a palavra volta ao mundo
latente
sacrificada
em nome das matérias que luzem menos
para se fazer da tábua a pedra
da casa o poema.


André Tomé

Um icebergue à deriva



Sobre o degelo da calote polar
pairam as asas verdes da aurora boreal
e o quebra-gelo avança
e pela grande superfície branca do ártico
desliza tranquilo o trenó
tornam-se mais humanas as neves eternas
após pueril beijo à esquimó
chega empoleirado nas hastes de uma rena 
o sol da meia-noite
e isto ainda não era uma vez os dinossauros
nem sou do Greenpeace
nem um documentário do National Geographic.

Lisboa , 30 de Dezembro de 2013


Carlos Vieira

A partir de agora, fora


A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.

Ana Salomé

U OMÃI QE DAVA PULUS

Na parede por cima da cabeceira havia três objectos: um alfange de fancaria que um amigo me trouxera de Alcácer Quibir, a carabina 22 automática e uma foto de eu-muito-puto a correr direito ao mar por uma estrada abaixo. A foto tinha por baixo uma legenda:
U OMÃI QE DAVA PULUS


Nuno Bragança, SQUARE TOLSTOI

Mãe!...


Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo
tão verdade!


Almada Negreiros

Ave haiku LXXII



Um raio de sol 
acendeu um pássaro de luz nas minhas mãos
à noite lançarei as suas cinzas ao mar.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Ave haiku LXXI



O mocho
vigia as grandezas e as misérias
deste tempo crepuscular.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
Pequenos grandes detalhes


Houve uma altura da minha vida, antes de ti, em que o detalhe e a raridade 
dos objectos faziam a diferença, era as coleções de selos de países, de que nunca ouvira falar e de conchas, que somente se podiam apanhar nos abismos mais inacessíveis e de penas de aves exóticas, entre as teias de aranha dos sótãos, onde viajava pela penumbra dos mundos.
Depois foste o vórtice de luz, a entrar por ali a dentro, foi quando eu me perdi na coleção dos felizes pormenores do teu rosto, das reentrâncias e interstícios fulgurantes do teu corpo, da leveza das tuas palavras aninhando-se no ouvido.
A minha coleção habitava agora em ti, foi crescendo em ti, que eras única e que só eu em ti poderia encontrar. 
Até que te perdeste de mim e agora procuro-te nos tons sépias da minha velha coleção, no abismo dos búzios ecoando o teu nome, nas penas que deixaste na tua fuga inopinada.
As minhas mãos moldam agora os detalhes do vazio, os nós da madeira, o torneado da tua cadeira, a distância milimétrica do teu lado da cama, sobretudo a intensidade da ausência do teu aroma, ao entrares em casa, o inundar da tua veemência esbaforida.
Reconstruo o mundo à altura do acanhado sótão da minha vida, depois da tua ordem de despejo, eu vou sobreviver, o problema mais complicado é a coleção, já dizia um qualquer iluminado que a beleza da vida está nos detalhes.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Acrobacias


sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
- superiores ou inferiores -
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.


Ana Paula Inácio

Essa doente sensação

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão, puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.


Nuno Júdice

Da recusa do abandono

Eu não tenho passado, trago tudo comigo. É uma questão de incompetência - construí uma casa de vidro sem aprender a porta, abandonei-me à minha sorte, e a janela que me mostras abrindo-se serve apenas para confirmar o que aqui se encerra. Por todos os cantos foram plantadas pela mesma mão as papoilas e as ervas daninhas e as vozes muitas disfarçadas pelos silêncios. O que aqui não se ouve ocupa hoje o espaço inteiro, despedaçado. E se o tempo parece ter esquecido este lugar, é porque há muito que nada esqueço. Não chegaste a tempo de perceber que nem sempre se confundiram as estações e as horas dos dias, que houve um tempo em que os nomes das coisas tinham nomes de coisas e não nomes de gente ausente. Mas tu que me olhas podes confirmar a lucidez do que digo quando digo que só a perda sempre nos acompanha.


Pedro Jordão, Golpe d'asa

é tudo o que me resta


Exactamente como foi, o medo de me enganar
mais tarde na memória - é tudo o que me resta: estar
de noite às escuras a pensar em ti


Ana Luisa Amaral

Ave haiku LXX



Fui atrás do canto de um pássaro
entrei por uma ruela e "desemborquei" num beco 
a ave tinha "despassarido" e ficou apenas um canto.
 

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013


Carlos Vieira

era uma vez


Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia
encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da
outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não
ficou nada. Esta história tradicional demonstra que se deve amar o
próximo ou então ter muito cuidado com o que se come.


Ana Hatherly

Pode-se escrever


Pode-se escrever sem ortografia

Pode-se escrever sem sintaxe

Pode-se escrever sem português

Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua

Pode-se escrever sem saber escrever

Pode-se pegar numa caneta sem haver escrita

Pode-se pegar na escrita sem haver caneta

Pode-se pegar na caneta sem haver caneta

Pode-se escrever sem caneta

Pode-se sem caneta escrever caneta

Pode-se sem escrever escrever plume

Pode-se escrever sem escrever

Pode-se escrever sem sabermos nada

Pode-se escrever nada sem sabermos

Pode-se escrever sabermos sem nada

Pode-se escrever nada

Pode-se escrever com nada

Pode-se escrever sem nada

Pode-se não escrever

Pedro Oom,


às quatro da manhã raramente


está aqui alguém, só de passagem.
eu, pelo contrário, gosto de sentar-me
porque o meio da madrugada vai bem
com estas pedras e estes sentimentos

mesmo que me recordes o resto
da noite, aqui perto, por ali,
entre os corpos organizados e
disponíveis, a língua e a conversa
decorada, essa memória
não chega. Nem tu

a meu lado sobrevives à
solidão deste lugar.


Pedro Santo Tirso

Podes ficar aqui?

Podes ficar aqui?

Não vás embora,
precisarei de mais alguns minutos,
horas, dias, semanas, meses, anos,

eternidades para te esquecer

Fernando Pinto do Amaral

Sonho-te real, em lágrimas de mar


Sonho-te real, em lágrimas de mar,
refaço as mãos, tuas raízes verdes,
conto e reconto as horas que passámos.
Repiso os passos, rasgo a estrada branca,
renasço em cada gesto que fizemos,
beijo-te outra vez, ajoelhado...


Enquanto longos, dolorosos versos
nas veias vão doendo


Pedro Tamen

Ave haiku LXIX


Pássaros, pássaros, pássaros
devoram-lhe os olhos e Invadem-lhe os sonhos
Hitchcock é um corvo que passeia na falésia.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Ave haiku LXVIII



O rei ceptico enviou um pombo-correio aos aliados
uma mensagem que poderia ser interceptada dizia:
"- Senão atacarmos à noite fá-lo-emos durante o dia!"

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Poema com motor fora de borda



Aqui vou eu, marinheiro de água doce com o motor fora de borda, pela ria fora, fintando pequenas ilhas e contornando os baixios, lobrigando as bóias e apalpando estrelas no acerto dos canais e da tábua das marés.
Depois, depois é o mar sem fim, sou o mesmo eu, dando-me ares de lobo do mar, o eu que é filho da terra firme e inexpugnável. Que teve sempre este navio da viagem das palavras a lavrar dentro de mim.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira