domingo, 30 de novembro de 2014

O peso da palavra



Palavras
substâncias
decompostas
grude de construir
a mobília 
e a casa
constelação 
de pequenos átomos
debaixo dela
vais dormir
nas noites
em que fojes dos dias
e aí forjas
essa argamassa
de tempo 
de efémero
onde perpassa
o murmúrio
de um lençol de lava
de música vulcânica
e tu exortas
a voz interior
o deslumbramento
e o etéreo
fixas o pigmento
que perseguiste
após
o segredo
desencontrado
no pó das palavras
esquecidas.

Lisboa, 30 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

Uma pequena transgressão




Aguardas
no sofá da sala
que o bicho da palavra
por dizer te devore,
lá fora 
instiga-te a sair
o sol exacto
de Inverno
e o ruído mecânico
das ondas 
dos automóveis,
desces pela 
suave melancolia
do elevador
sem qualquer
interrupção
de um "bom dia!"
de um vizinho
madrugador
pões a chave
na ignição
e escutas 
a resposta familiar 
do motor 
da viatura
sempre disponível
para te levar
a algum lado
sem te pedir nada
nem uma palavra
esqueceste-te 
de ti e do cinto
em qualquer
esquina
podes voltar 
a transgredir.

Lisboa, 30 de Novembro de 2014
Carlos Vieira



sábado, 29 de novembro de 2014

Poema de uma ave à chuva



Uma ave
arde 
devagar,
define
a árvore
entre
a névoa,
o canto
é agora
água
límpida
regato
a deflagrar
o espanto,
paira
uma miríade
fosforescente
de luzes
de vozes
reinventando
a lua e o luar,
palpitando
à flor da pele
amordaçada
os esquecidos
os timídos
e os sós,
e assim
lhe permitem
respirar
depois do medo,
das penas
e que se possa 
decifrar
a mensagem
implicíta
no tamborilar
da chuva,
a sua ternura
ingénua
minimal
e a insensatez
que alaga 
as ruas lá fora
e que cai 
batendo asas
dentro de nós.



Carlos Vieira

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Não há outro país...

Não há outro país, onde me sinta tão próximo da Guerra das Estrelas como na Holanda, cruzam-se pelos mesmos espaços contemporâneos ou de há vários séculos, gente dos mais diversos planetas e tribos, onde os mais sagrados e inconfessáveis interesses se vislumbram. Até as duas rodas de bicicletas, dão às cidades, a voluptuosidade características dos movimentos das naves. Sento-me numa esplanada a deglutir "poffertjes" e sinto-me revigorar, pronto para rumar a outra galáxia, apesar do primeiro ataque, em que vi estrelas, daquilo que no meu diagnóstico amador, pressinto ser "dor ciática", resultado de outras guerras e porque tudo se paga cá na Terra.

Haia, 26 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

Mais um eterno reencontro ou retorno



O meu eterno retorno
é á praia de Scheveningen
a um céu azul claro 
para quem não sabe nadar
de perigosa inclinação
e nuvens de algodão desfeitas 
no mar do Norte 
hoje numa estranha quietude
no ouro do areal a perder de vista
onde sussurram
estas gaivotas breves 
solidão em branco e preto
de um ou outro casal 
que aqui vêem recuperar as forças 
depois do amor ou do desamar
sem fazerem ondas
vão ver-se junto ao mar 
quase morto
já agora experimentam 
a tempertura da água
enquanto recordo um dálmata
a brincar com um corvo
reafirmando as boas relações
entre espécies
atirando-nos areia
para os olhos
na praia de Schevenigen
onde morreu meu pai
com mais precisão
foi aqui que recebi a notícia
da sua morte
agora encontro-me sempre com ele
quando aqui volto
e a partir dessa memória
de dor atormentado
renovo a minha crença
na humanidade.

Scheveningen (Haia), 26 de Novembro de 2014

Carlos Vieira


terça-feira, 25 de novembro de 2014

Escrever friamente e em claro


a folha branca
a noite em branco
o tampo da mesa
em branco
na minha cabeça
uma branca
o meu mundo
coberto
de um manto de neve
do gelo da inacção
apenas as formigas negras
das letras avançam
em pequenos grupos
nos antigos trilhos
desafiam a inóspita superfície
atravessam esta gelada desolação
que de mim se apoderou
que nos conquista
e choramos agora sobre o leite
derramado
que nos invade
o delimitado campo
A4 da escrita

Lisboa, 25 de Novembro de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Estratégia da aranha III



Por um fio
que nós tecemos
estamos presos
suspensos
sobre o abismo 
de um tempo
que lento
nos devora.

Lisboa, 23 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

domingo, 23 de novembro de 2014

A estratégia da aranha II



De um recanto
abarco agora todo o aposento
teu corpo
que arde em lume brando
sobre o sofá
teu olhar liquído
e tuas mão lívidas
que aqueces
na chávena de chá
já vivi suspenso num abat-jour
a derramar a luz
sobre os teus pés
e na áurea melancólica
da tv ligada
de onde escorre uma ladainha
que tu não ouves
nem vês
já me debrucei
sobre o abismo
dos quadros dependurados
tão profundamente abstractos
na solidão dos teus porquês
já habitei por dentro
do preto e vermelho
alimentando-me
dos vagos mistérios 
que guardas num móvel chinês
já esperei pelas tuas mãos
naquele centro de mesa africano
e pelos teus lábios
a beijarem
a fruta fresca dos arrabaldes
e o poema pode ser a teia
que será uma luminosa compilação
dos teus pequenos gestos
domésticos.

Lisboa, 23 de Novembro de 2014
Carlos Vieira



Estratégia de aranha I






Entre mim e a rua
há duas ou três flores interiores
com quem nunca troquei palavra
uma delas é artificial
sem alma 
e está sempre nua
descobri há pouco tempo
não lhe sei o nome
de qualquer forma 
este é muito redutor
na lateral da grande janela
da sala
no exterior
como se fossem escorraçadas
mais algumas flores
a minha ousadia é lançar
o fio do olhar
que atravessa a rua
e do outro lado
outros jardins interiores
a mesma indiferença
e anonimato
a aranha furtiva
tece por dentro de mim
um poema de noite e de sol
onde alguém tropece.

Lisboa, 23 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O meu cavalo baio contra a solidão I



Ali estavas
na tua velha casa
sem os lustres doutros tempos
quase em ruínas
dali vislumbras
as árvores de pequeno porte
cabeleiras desgrenhadas
loucas e esparsas 
pela campina
que o crepúsculo e a névoa
tingiu de pratas e ouros
a acentuar
o azeviche dos touros
contíguos aquela quietude 
e à sua solidão
e ao seu cavalo baio 
no cercado
desfere coices no vazio
e desmente-lhe diáriamente 
o abandono
quando salta pela janela
entra na sala
e lhe vai comer à mão
saliente-se-lhe o cuidado
de deixar os móveis
incólumes.

Lisboa, 17 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


sábado, 15 de novembro de 2014

Duke Ellington e Haruki Marukami



"Já não sei de nada - confessei. - Sei que não me quero separar de ti. Ao mesmo tempo, contudo, não se se é essa a resposta correcta. Nem sequer tenho a certeza de conseguir escolher. Escuta, Yukiko, tu estás aqui. E sofres, bem vejo. Sinto o calor da tua mão. Existem, porém, coisas que não se podem ver nem sentir. Como, por exemplo, as emoções. Ou as possibilidades. Coisas que aparecem vindas do nada e se entrelaçam umas às outras. E vivem dentro de mim."



"A sul da fronteira, a oeste do sol", de Haruki Murakami


Duke Ellington e Haruki Marukami



"Já não sei de nada - confessei. - Sei que não me quero separar de ti. Ao mesmo tempo, contudo, não se se é essa a resposta correcta. Nem sequer tenho a certeza de conseguir escolher. Escuta, Yukiko, tu estás aqui. E sofres, bem vejo. Sinto o calor da tua mão. Existem, porém, coisas que não se podem ver nem sentir. Como, por exemplo, as emoções. Ou as possibilidades. Coisas que aparecem vindas do nada e se entrelaçam umas às outras. E vivem dentro de mim."



"A sul da fronteira, a oeste do sol", de Haruki Murakami


Soldo...

soldo 
as palavras
com cuspo
e atiro-as
à cara
dos traidores

Lisboa, 14 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

O ferro a vapor...

O ferro a vapor
a vincar
o colarinho
depois desliza
pelo tecido
restante
a seguir
demora-me
no teu olhar
e despertas
com o cheiro
a queimado
da camisa
no peitilho
ao nível
do coração.

Lisboa, 14 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

Nada na manga...

Nada
na manga
nada no colarinho
sem truques
de esquerda baixa
tudo jogo limpo
sem cartas marcadas
usando apenas a ilusão
da luz velada 
e de asa de sombra
da força excessiva
que te torna frágil
e da preciosidade
imaterial
dos interesses
que nos desconcerta
caleidoscópio de imagens
de encantantatórios
afectos
que nos invadem 
e moldam o espírito
e que por vezes
nos atrevemos
a chamar poesia.

Lisboa, 14 de Novembro de 2014

Carlos Vieira 

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

No meu portfólio


No meu portfólio
levo o sorriso
 a espraiar-se no teu rosto
flor bruxuleante
que fere
o azul metálico
no céu do barlavento

no meu portfólio
arquivo
as tuas mãos
molhadas
no ninho do teu colo
em silêncio pousadas
depois de me libertarem
do caos
com teu enleio
soltando as cores e os aromas
de um qualquer jardim

no meu portfólio
existes quando
desces a alameda
dos sonhos
com aquele vestido negro
e de braços nus
e tu atónita
embevecida
a ouvir um violino
estremecias
por cada nota em falso
que divergia
a cada tinir de moeda
que num boné
caía

no meu portfólio
ainda te reconheço
a preto e branco
tu que ali vais
em paralelo
sem nunca te encontrares
com aquele rio escuro
por sua vez
o rímel descia
pelo teu rosto
máscara
de uma alegria húmida
que se foi desvanecendo



no meu portfólio
do meu desvelo
tenho neste envelope
um pedaço de ti
recordo-te
teu cabelo castanho
em desalinho
depois de um confronto
inesperado
com o vento
sobes rua acima
focada em resolver
definitivamente
aquilo que por ti própria
nunca poderias
conseguir
fora de ti

no meu portfólio
guardo ainda
naquele retrato
límpido
esse olhar
onde descansei
que nos iria
levar para dentro
da gruta
das nossas Mil e Uma Noites

no meu portfólio
não posso esquecer
que trago protegido
das intempéries
e dos fragilidades
dos momentos
a imagem fulgurante
de quando me esperavas
na esplanada em tons de sépia
pássaro do eterno
desassossego
inquietação
de qualquer lugar

no meu portfólio
este flagrante
de quando chegavas
à estação do Parque
um pouco descuidada
indescritível
era porém a tua ternura
subterrânea
apanhávamos
a última carruagem
e o teu corpo desesperava
pela avidez
de uma haste de sol

no meu portfólio
a lanterna
do arrumador
encontrava-nos
num recanto
da terceira fila
do enlevo
de amor recente
com o brilho  
do foco de projector
por cima das nossas cabeças
a atravessar o tempo
os gestos mínimos
da cumplicidade máxima
de um desejo sem tecto
adolescente
das legendas a embaciarem
e o fogo dos teus lábios
a enxamearem
a última sessão de um filme
que para sempre
havíamos de desconhecer
o final

no meu portfólio
aquele fragmento
de mar cortado
pelo picotado
numa praia de inverno
ali perto
e nós presos pelas garras
de uma paixão
sem piedade e sem espaço
éramos sobrevoados
por toda a imaginação e asas
de gaivota
num ruído ensurdecedor
de sangue
e grasnidos polifónicos

no meu portfólio
por vezes
chega-me à memória
o cheiro a resina no pinhal
a que se sobrepôs
o néctar
decorrente do teu corpo
a desenvoltura 
das tuas pernas brancas
e dos pinheiro verdes
a rodopiar
a rima
das feridas nos troncos
e da insondável solidão
de musgo
no percurso insaciável
dos meus dedos

no meu portfólio
ali estavas
na tua beleza inacessível
de estátua de alabastro
com sonhos de aurora boreal
nunca te compreendi
nesse dialecto
de deusa
que atravessou todas as noites
da minha recorrente utopia
e se te abracei depois
se sobrevivi
neste fotograma
da eternidade
no cloridrato de prata
foi porque
já não tenho medo da morte
e cego de olhar o sol
e na partilha
de uma inadiável demência
nos possuímos
num inexplicável  infinito
a dedilhar carícias.

Lisboa, 13 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


“Fragmentos de vida”  de Marta Orlowska


terça-feira, 11 de novembro de 2014

folha 5



de folha caduca ou perene
qualquer que seja
na superfície da sua pele
pode ler-se e ouvir-se sempre histórias
de assombrações e fotossíntese
nos intrincados deltas
das nervuras
na subtileza dos filamentos
de penugem
iluminados pela alegria tranquila
dos subterfúgios de clorofila
delimitadas
pelo desastrado recorte
ou delicada renda
que os crepúsculos
desenham
a borboletear ao sabor da brisa
enquanto se insinua
um perfume
onde se amansa ou se precipita
a irracionalidade de todos os animais
ecoa a sinfonia
que irá antecipar o rumor dos pássaros
e deflagrar seu canto emboscado
na solidão das copas
e no desespero dos troncos
que se contorcem
conforme é perene ou caduca
a folha de árvore
em que se vive
pega-lhe pelo pecíolo
como quem ergue um poema
e na sua leveza
olha-a em êxtase
na contraluz
rendido
confessa-lhe
os últimos versos

Lisboa, 11 de Novembro de 2014

Carlos Vieira


folha 9


a parra
que esconde o sexo
enrubesceu
Lisboa, 11 de Novembro de 2014
Carlos Vieira

folha 4


falta-nos
a respiração
perante a beleza
e o perigo
dos elefantes
a andar de nenúfar
em nenúfar
Lisboa, 10 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


folha 3


a folha
de plátano
que foi lança
vermelho vivo
resistente
voou da árvore
e foi na dança
amarelo torrado
agora aos tombos
em agonia
desce a escada
íngreme
feita farrapo
exangue
talvez
o vento
lhe pegue
e a leve
até mão
de criança
que a adormeça
no herbário
junto da família
do limbo
das lanceoladas
Lisboa, 10 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


folha 2


três seixos vermelhos
e uma folha verde
pequenas artérias 
e poros de luz
reinventam o mistério
exorcizam
toda a obscuridade
Lisboa, 10 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Folha 1




esta folha de oiro caída
é língua morta
que o vento gurgita

efémero insecto
que exausto transporta 
a página do inverno da vida

lâmina calada
que um silêncio afiado
de nervos e filigrana exorta

rasto na estrada
perdido no desassossego
bandeira derrubada

Lisboa, 9 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


domingo, 9 de novembro de 2014

Palavras com significado

O artifíce
da palavra
ausculta
um desconhecido
sentido interior
murmura
consigo próprio
o desconforto
da viagem
cuida
da imperceptível
ternura
que percorre o ar
que as liga
as palavras escolhidas
e as que renova
e nas suas sílabas
vai crescendo 
em fogo lento
a raíz 
do canto
de um pássaro
que se tornou
a árvore
e a sua sombra
e adquirem o ritmo
da chuva caíu
na boca sequiosa
e naquela expressão
seca
nasce o rio
que corre
mais do que o grito
por um novo leito
e a partir
das suas margens
vai inaugurar-se
o crepúsculo do diálogo
onde os peixes
são versos soltos
que roubaram
a luz das estrelas
e agora o poema
está coberto de escamas
tornou-se armadura
de um poeta guerreiro
que voltou da batalha
da busca lapidar
da essência das palavras
e do silêncio
ao recolhimento
que o faz regressar
à descoberta 
de um outro tempo
a reclamar um valor novo
para a vida
dos que não tem
não sabem
ou não querem 
a palavra.


Lisboa, 9 de Novembro de 2014
Carlos Vieira










sábado, 8 de novembro de 2014

Jardim Zoológico contíguo à minha infância



Feri-me
num joelho
na altura
em que saltava
o muro 
para o mundo
do Jardim Zoológico
tinha amigos
entre a bicharada
e os tratadores
clientes fiéis dos copos de três
do meu avô
na Travessa das Águas Boas
tinha no horizonte ao fundo uma sebe 
que não me lembro
em que estação tinha flores violeta
por cima delas os longos pescoços 
manchados das girafas
desde esses tempos a espreitar
foi a calçada molhada de granito 
a reluzir
e os bassos anos sessenta
com inveja das nossas brincadeiras
das caricas
passado tão vivo
como o sangue que corre 
de um ferida que nunca 
vai sarar.


Lisboa, 8 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

Pão pão

Pão pão
queijo queijo
poema sem pastor

Lisboa, 8 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

Pão ou poesia

"Se tiver apenas dois cêntimos nas suas mãos, compre um pouco de pão com um e uma flôr com o outro." (Provérbio chinês)



Tem dias
que a poesia
anda arredia
as palavras
fogem
como se tivessem
visto bicho
há destes dias 
em que a gente
não sabe
onde nos havemos
de meter
e desaprendemos
de falar
e se falamos
logo
nos olhamos 
de lado
perante
a oportunidade
que perdemos
de ficar calado
este tempo
de Outono
de nudez
das nossas vidas
de sabermos tanto
e de possuirmos 
tanta coisa
e da escassez
de palavras
e da escolha dramática
ser cada vez mais
pão ou poesia.

Lisboa, 8 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Penas



A pluma
que voa e dança e plana
pousa na terra exausta
é aquela que foi ágil na tua mão
efémera memória de ave
foi toucado na revolta do índio
é suave dedilhar da plangente guitarra
forrou o catre da insónia
e sossegou os sonhos nunca realizados
foi a mesma que calibrou a viagem das setas
na sede do amor e da guerra
na sua avidez de sangue derramado
de onde escorreu o murmúrio ancestral
e o grito do silêncio dos que foram incinerados
na intolerância do fogo
e no esquecimento das cinzas e das masmorras
penas dos que amaram desmesuradamente
e lâminas da luz resplandecente
e experimentaram o gume da fome
que sobrevoa  os países
e das fraquezas fazem forças
e dão asas à liberdade.

Lisboa, 6 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


Chris Maynard

 

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Aguarela


Pingos de chuva
a tamborilar
no espelho
caligrafia
de água verde
que me escorre
do tanque
e do reflexo das faias
a aguilhoar
um céu de nuvens
jangadas de espuma
em usurária
discussão
de prata de lei
enquanto isso
a rã
retardatária
foge do poeta
que a surpreende
e salta
pensando-se
a salvo
para dentro
da armadilha
da poesia
depois
que passou muros
e barragem 
contra o tempo
ouço-a com o cinismo
dos desenganados
coaxar
um verso de folgo
a invadir-me
o tédio do despacho.

Lisboa, 5 de Novembro de 2014
Carlos Vieira



domingo, 2 de novembro de 2014

Anoitece



Não saí de casa
e já anoitece

à volta da auréola 
do candeeiro da rua
deixou de haver
uma legião de mosquitos
e isso pode querer dizer 
alguma coisa

no silêncio
da casa 
de onde não saí
pode-se escutar
o ranger subtil
das páginas 
de um romance
que desfolho
ou um clamor
das vozes da ficção
na sua nocturna
vida de tinta

enquanto tal
ondas de faróis
ciclicamente
vão golpeando 
a noite
de todos
quantos habitam
esta rua
a lembrar holofotes
em campos 
de concentração

para lá das cortinas
e das persianas
das gaiolas
das cozinhas
as pessoas 
à minha frente
pisam-se
literalmente
umas por cima das outras
e vice-versa
vagueiam lentas sombras 
domésticos dramas

há dois gatos 
indiferentes
à janela
um terceiro
no sofá sentado
vê televisão
tudo tão
previsível
como se fosse
ainda a preto
e branco

vou sair agora
porque à noite
todos os gatos
são pardos.

Lisboa, 2 de Novembro de 2014
Carlos Vieira





Embriagado na sobriedade das palavras



Curvo-me
sobre as palavras
que escolhi
tento encontrar
aquelas que juntas
possam deflagrar
o fogo interior
em que se oiça
límpido o coro
dos homens
amordaçados
que em cada voz
se eleve a luz
e a lâmina
o peso líquido
que nos embriaga
em todas e cada 
palavra
reverso do silêncio.

Lisboa, 2 de Novembro de 2014
Carlos Vieira



Um corvo de azeviche...

Um corvo de azeviche
sulcou o céu azul da minha rua
preso no bico
um pedaço de queijo de cabra fresco 
do conto apenas o canto
de algum poeta
que não sabe voar.

Lisboa, 2 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

A Sombra Que Nos Acolhe: Antologia Poética Clepsydra, organizada por Gisela...

A Sombra Que Nos Acolhe: Antologia Poética Clepsydra, organizada por Gisela...: O vento, poeta, é o caminho. Amadeu Baptista Permitam-me começar com este verso do poeta Amadeu Baptista. Do mesmo modo, Gis...

Domingo de finados



Uma luz crua
no regresso indolor
à sobriedade do conhecimento
uma manhã
onde apenas um pássaro
aclara a voz
uma necessidade elementar
a interposta presença
do sol
no cor de rosa e amarelo
dos prédios desmaiado
Inverno
premeditado
num país a dormir
anestesiado
oiço afastado um rumor
de vozes
de tantos que partiram
e que de novo
agora se levantam
clamando pelo seu testemunho
inabalável determinação
sua ternura e palavra
sua coragem
não pode ser em vão
neste domingo
de finados
de luz crua
de inelutáveis memórias
ou da sua sofreguidão.

Lisboa, 2 de novembro de 2014
Carlos Vieira






sábado, 1 de novembro de 2014

A morte está de passagem



As fitas brancas a dizer polícia, em azul, delimitavam uma parte do passeio e da avenida, elegiam um jardim improvável, a irromper no meio do asfalto. À volta do cenário, pirilampos azuis e vermelhos, os focos de algumas lanternas, ocupavam-se dos diferentes ângulos da ocorrência, de iluminar as diferentes versões e objectos.
Havia um sorumbático candeeiro a uns dez metros do local do crime, não se tratava de um acidente como muitos acreditavam, um atropelamento com fuga, quanto muito. Ali e acolá néones publicitários, lá prosseguiam a sua estratégia de marketing, indiferentes ao turbilhão de emoções que hoje, teve ali o epicentro.
Algumas janelas dos prédios contíguos faziam o tal puzzle de luzes, de intensidade diferenciada, alguns residentes comentavam, de forma mais ou menos apaixonada, à janela com os vizinhos a completa ignorância do que se tinha passado, naquele evento noturno, outros permaneciam em silêncio e aproveitaram para mais um cigarro.
Os peritos forenses, nos seus fatos de anjo vestidos de branco, procurando ser objetivos dão asas à imaginação, em busca desesperada do vestígio imaculado e do pecado.
Os investigadores criminais rodopiam, indagam, procuram o móbil, confrontam, enfrentam a mínima luz, afastando a sua própria escuridão e morte, perguntam às testemunhas, aos técnicos, aos desconhecidos suspeitos, ao corpo, feito cadáver. Por momentos, nas palavras daqueles e nos seus gestos, um pequeno interregno, naquilo que será a solidão eterna.
Entre lágrimas e suspiros os familiares olhavam para o cadáver, incrédulos, perguntam-se como pode ter morrido, aquele que era uma pessoa boa, que não fazia mal a uma mosca, assim, desta forma no meio da rua, sozinho, desconheciam as palavras do poeta “que seja eterno em quanto dure”, a vida e o amor.
Comenta-se à boca calada que foi alvejado, que se ouviram dois ou três disparos, pelo que a arma poderia ser um elemento determinante, para se poder chegar ao autor.
Será que o mesmo não a deixou por ali, dado que agora a mesma queima, apontando a partir de agora, sempre para a sua responsabilidade ou será que o autor é um facínora, requintado homicida que tem uma fria relação, vingando a sua vontade, a utilidade permanente da arma do crime.
Poderia estar por ali, atirada para o seio de alguns arbustos, alguns metros à frente do local do crime, era necessário realizar desde já, buscas exaustivas.
Os curiosos foram-se afastando, o corpo foi levado para o IML, foi saindo de cena quem não era de cena, apenas as viaturas da polícia, as lanternas como enormes pirilampos foram alargando a área de investigação.
Verificavam esconsos, sargetas, papéis caídos na via pública. Os flashs das máquinas digitais que foram registando para mais tarde recordar. Os diversos croquis ultimavam-se, tentando esquematizar a emoção e o caos que se passaram no lugar do morto.
Foram-se apagando as luzes dos prédios, ouviam-se murmúrios e sussurros dos investigadores e da vizinhança.
Três tiros, pelo menos, tinham troado e relampejado, que ninguém ouvira ou vira, ninguém se compromete, igualmente, ninguém conhece a vítima que vivia há anos, a cerca de cinquenta metros do local.
Por fim, um grito de alegria ergueu-se estranhamente no adiantado da noite fria, um investigador, apontava para o meio de umas ervas altas, num campo ali próximo e dizia para os colegas. “ É um 38, é um 38!”
Num snack ali próximo já fechado, o proprietário comentava com um cliente que aquilo tinha sido um problema de trânsito, entre a vítima e um peão que se tinha insurgido na passagem da passadeira com um indivíduo que se deslocava num Audi, cinzento metalizado, o qual tinha tido difícil anuência em o deixar passar. O indivíduo de meia idade, saiu do carro sem dizer uma palavra, dirigiu-se ao peão e deu-lhe três tiros a dois metros, quando o mesmo se virou para ele.
Soube-se mais tarde que o autor era um comerciante que se dirigia a casa, a explicação que deu para o horrível acto que cometeu foram os seguintes, o negócio com esta crise estava mau, acabara de ter mais uma discussão ao telemóvel com sua mulher, por estar sempre a chegar tarde a casa.
Mas o copo de água foi aquele indivíduo que não passou, passeou pela passadeira, que lhe virou as costas, nem sequer lhe agradeceu, estava assim a pedir para ir passear para outro mundo.

Lisboa, 1 de novembro de 2014
Carlos Vieira




O teu lugar na ausência



Olho-te até ao mais fundo da tua alma
e isto já não é só
um olhar
nem apenas a tua nudez
de arrepiar.
Permaneço nesta ilusão
neste medo da luz
da busca incessante
do poder evocativo das palavras
encantatório
que te vai despertar.
Neste aposento de bela acústica
neste horror ao vazio
neste vão do silêncio
observo o delta das tuas pernas
e o movimento mínimo
do teu sono
dos teus sonhos.
Como são dolorosas
cada uma
e o somatório
das tuas ausências.

Lisboa, 1 de novembro de 2014
Carlos Vieira



Álvaro Siza, “O Horror ao vazio”